Fim do mundo começa pelo Rio Grande do Sul (Umberto de Campos)

Umberto de Campos

Caso há dez dias eu tivesse escrito o roteiro de um filme de catástrofe para Hollywood, em que uma província brasileira seria total ou parcialmente destruída, provavelmente seria recebido com desdém pelos produtores. Ou seria considerado lunático, ao sugerir como título, para tal roteiro, algo bem característico dos meus conterrâneos que fazem as manchetes dos jornais, que é puxar a notícia sempre para o Rio Grande. O filme poderia se chamar “O fim do mundo começa pelo Rio Grande do Sul”.

Como escrevo dez dias depois do início das chuvas, asseguro que o meu roteiro nunca foi escrito e nem nos meus piores pesadelos – imagino que nem os climatologistas desconfiavam – poderia imaginar as cenas que ilustram; não um roteiro, mas a mais dura, triste e desafiadora realidade já vivenciada pela população gaúcha nos últimos anos. Para escrever ficção é preciso imaginar uma realidade inexistente; mas neste caso a realidade superou a ficção em muitas vezes.

Por que se atribui às mudanças climáticas essa tragédia jamais imaginada? O Planeta vem avisando há muito tempo que não aceita desaforos.

O efeito borboleta foi descrito em 1972 e vem se materializar de forma trágica e realística, 52 anos depois.

Para quem não lembra, o efeito borboleta foi uma metáfora usada pelo meteorologista e matemático Edward Lorenz, quando se discutia a teoria do caos, em uma conferência na Academia de Ciências de Washington. Ele explicava que pequenas mudanças em um sistema dinâmico podem levar a grandes e imprevisíveis consequências em um futuro distante.

A coincidência trágica é que Lorenz, ao apresentar seu exemplo aos acadêmicos daquela conferência, usou o Brasil como ponto de partida. A realidade acabou invertida. Hoje é o Brasil que, na verdade, sofre um evento catastrófico, em consequência de pequenos eventos que nós, os seres humanos permitimos que acontecessem no mundo inteiro – quem sabe no Texas… Fruto de nossa ganância.

Lorenz usou a hipótese de que uma borboleta, batendo asas no Brasil, poderia teoricamente influenciar o curso do tempo e resultar, mais tarde, em um tornado no Texas.

Quem poderia imaginar as cenas do meu também hipotético roteiro de “cinema catástrofe”?

Na realidade gaúcha se encontra os elementos que definem esse tipo de filme: enredo apocalíptico, drama, cenas de ação e um clima de tensão inacreditável. Chuvas tão intensas e concentradas que elevaram os volumes de rios e seus afluentes. Cidades completamente destruídas – um cenário só visto em guerras – pontes levadas pela correnteza como se fossem maquetes (não eram efeitos especiais) e não obras gigantescas de engenharia.

O centro de Porto Alegre tomado pelas águas. Um estádio de futebol – do Grêmio – como uma piscina gigante ao centro. O Centro de treinamento do adversário, o Internacional, completamente tomado pelas águas. Um aeroporto fechado; não por algumas horas, mas por muitos dias… Cidades incomunicáveis.

Onde poderíamos imaginar que as pessoas em plena era da globalização ficariam sem qualquer sinal de celular, sem combustível, sem comida e sem água por horas ou dias? Que roteirista poderia conceber a ideia de um personagem que, em meio ao caos e à destruição teria que permanecer 15 horas sobre o teto de um carro, até receber o milagre do resgate?

Aquela cena dos bois descendo a correnteza talvez fosse imaginada por um roteirista mais criativo. Mas fazer um roteiro em que dois terços dos municípios de uma província fossem afetados pela tragédia nunca me passou pela cabeça…

O número de mortos e desaparecidos é alto. Mas o que mais preocupa são os que sobreviveram à tragédia. A reconstrução de uma vida econômica já é difícil. Mas a reconstrução das próprias pessoas e de suas famílias, desta vez, vai depender da reconstrução (não só de casas), mas de cidades inteiras e de um completo ciclo econômico.

Será preciso reconstruir as próprias sociedades. Casas, comércio, indústrias… ter emprego e gerar renda para essas pessoas. Vai ser um trabalho gigante.

A explicação climática para o fenômeno é clara. Uma combinação de frentes frias, baixa pressão sobre a região (as pressões mais altas caminham em direção às pressões mais baixas) e um canal de umidade (rios aéreos) que descem da Amazônia em direção ao Sul, simplesmente estacionaram sobre o centro do Rio Grande do Sul. Mais precisamente na metade central do Estado.

É raro. Mas acontece.

Os especialistas garantem que essa combinação só foi possível devido aos efeitos já conhecidos – e sempre negados – do aquecimento global.

Quando a Covid era a nossa tragédia da vez eu escrevi, certo dia, que a sensação de culpa era grande e desconcertante. Ao sair para a rua, alguém poderia trazer, sem saber, para dentro do seu lar, o vírus que iria causar a morte de uma pessoa amada.

Então me questiono. Serão os gaúchos que vieram plantar soja em outros estados, indiretamente responsáveis pela tragédia dos seus, neste outono?

Até a década de 70 praticamente só o Rio Grande do Sul produzia soja para exportação. Como essa cultura exige extensões enormes de lavouras, vários produtores gaúchos foram procurar terra barata em outros estados. O Rio Grande já não tinha espaço.

Hoje o tererê convive com a cuia do chimarrão em vários municípios do centro-norte do país. Grande parte das fazendas de soja, algodão e milho pertencem a gaúchos. Tem gaúchos espalhados por Mato Grosso, Goiás, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Bahia, Pará…

Hoje fala-se muito na devastação do cerrado.

Em meus tempos de piloto de avião e planadores, vi de cima estados como Goiás, Minas e Bahia. Boa parte das terras – antes cerrado nativo – foram transformadas em lavouras muito produtivas. Literalmente esses gaúchos transformaram o Brasil em celeiro do mundo. Dívida reconhecida pelo presidente Lula, ao falar da responsabilidade do restante do país para com os gaúchos.

Aqui no Centro-Oeste temos uma seca extrema, que dura de cinco a seis meses. De março a setembro. Nesse tempo me acostumei a literalmente observar a coloração da terra lá embaixo. Nesse tempo de seca, fica tudo cinzento. As lavouras estão aradas. A cor é de terra.

Nos poucos lugares em que a vegetação nativa foi preservada acontece um milagre. Um mês antes das chuvas recomeçarem, a vegetação característica do cerrado começa a verdejar. Sem chuva, sem nada, como se adivinhasse a temporada das águas que está para chegar.

Como não tem mais cerrado… o restante só fica verde quando começa a chover.

Centenas de milhões de automóveis queimam combustível fóssil. Além de trocar oxigênio por gases tóxicos, na queima, esses motores trabalham com temperaturas de cerca de 90 graus. E trocam calor com o ambiente. Não me digam que não aquece. Se o planeta suporta, ou não, é outra história.

Infelizmente, no momento em que os meus conterrâneos passam pela maior tragédia de nossa história… impossível não voltar ao meu cérebro a sensação de impotência que senti durante a Covid. O medo de – mesmo involuntariamente – ser responsável por trazer um inimigo mortal para matar alguém que se ama. Afinal, morador de Brasília, eu também sou emigrante…

O efeito borboleta? Sim. A Amazônia que buscamos preservar como pulmão do mundo se encarregou de abastecer com sua umidade; as nuvens que vieram despejar suas águas, nas águas dos rios gaúchos. Por esse prisma poder-se-ia culpar a preservação da floresta pela tragédia no Sul. A boa notícia é que este acontecimento demonstra claramente a influência dos grandes sistemas meteorológicos e a necessidade de estarmos atentos a eles.

Do mesmo jeito que o governador Eduardo Leite clama por ajuda e pede que se esqueçam as diferenças políticas, nessa hora; também nós precisamos esquecer qualquer diferença ideológica na discussão das questões climáticas.

Até porque a tecnologia e a Inteligência Artificial já podem fazer esse trabalho por nós. Desde mapear os problemas, até apontar soluções. Nosso trabalho pode ser apenas acreditar e permitir a mudança.

Pode até ser que o fim do mundo tenha começado pelo Rio Grande do Sul. Mas pode ser, também, que a dimensão da tragédia sirva para que acordemos e salvemos o Planeta do fim.

Por Umberto de Campos, Jornalista,Especialista em Neuropsicologia 

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