O brincar ensina. A pressa atrapalha. A ciência comprova. (Damila Bonato)

Damila Bonato. Créditos: Divulgação

“O jogo é o trabalho da criança.” Essa frase, mais ou menos com essa configuração, está presente nas obras de diversos pensadores que se dedicaram a estudar e conceituar a educação. Jean Piaget e Maria de Montessori são dois exemplos disso. Dizemos com naturalidade que criança “tem que brincar”. Mas essa frase, muitas vezes reduzida ao que parece ser um conselho, carrega uma verdade científica e política muito mais profunda: brincar deve ser, sempre, a única forma de trabalho da infância.

Esse é o modo como as crianças aprendem, experimentam e se preparam para a vida. É, na verdade, tão importante, que a brincadeira foi declarada um direito humano fundamental de todas as crianças, em 1989, pelo Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos. Mas, paradoxalmente, em pleno século XXI assistimos à erosão progressiva do tempo e do espaço destinados ao brincar, com uma inundação de telas e conteúdos digitais que, embora momentaneamente mantenham as crianças mais quietas e comportadas, roubam delas a oportunidade de entediar-se e, com isso, ter de inventar brincadeiras. Perder isso significa implodir a base da aprendizagem e do bem-estar infantil.

Vários estudos documentam que o tempo livre e não estruturado das crianças diminuiu nas últimas décadas, por uma série de motivos. Há evidências de que esse declínio tem custos reais no desenvolvimento. Um estudo de 2022 publicado no PubMed Central, apontou que o tempo de brincadeira está associado a ganhos em autorregulação, leitura e até habilidades matemáticas iniciais, reforçando que o brincar não é mero lazer, mas prática cognitiva com efeitos mensuráveis.

A psicologia do desenvolvimento e a pedagogia contemporânea convergem nesse ponto. Revisões amplas da literatura – reunindo achados de neurociência, observações em sala de aula e pesquisas longitudinais – mostram que o brincar favorece a construção de conexões neurais, a resolução de problemas, a criatividade, a empatia e a regulação emocional. Instituições de referência em saúde infantil endossam esse entendimento. A American Academy of Pediatrics publicou uma posição clínica destacando que o brincar diminui estresse, melhora a regulação emocional e é imprescindível para o desenvolvimento neural e social. “Brincar não apenas oferece oportunidades para estimular a curiosidade das crianças, suas habilidades de autorregulação, o desenvolvimento da linguagem e a imaginação, mas também promove interações recíprocas entre crianças e pais – um elemento essencial para relacionamentos saudáveis”, diz o documento.

Inspirado no conceito de ócio criativo, desenvolvido por Domenico De Masi, é possível afirmar que o brincar representa, para a criança, a síntese ideal entre aprendizagem, prazer e liberdade. Para o sociólogo italiano, o ócio criativo é aquele estado em que trabalho, estudo e lazer se entrelaçam, promovendo uma forma de atividade humana rica em significado, capaz de gerar conhecimento, inovação e bem-estar. Quando uma criança brinca livremente, sem a pressão de resultados imediatos ou metas escolares, ela está praticando esse tipo de ócio: aprende sem perceber que estuda, resolve conflitos sem saber que está desenvolvendo empatia, inventa regras e mundos sem saber que está antecipando competências cognitivas complexas. O brincar, nesse sentido, não é antítese da aprendizagem — é sua origem mais pura.

De Masi também nos adverte que sociedades centradas exclusivamente na produtividade acabam por atrofiar as capacidades humanas mais importantes para o século XXI: a imaginação, a cooperação e a sensibilidade. Ao desvalorizar o brincar e substituí-lo por uma rotina escolar hiperestruturada ou por dispositivos digitais que ocupam o lugar da criatividade espontânea, estamos educando crianças para um mundo que já não existe. Em vez de formar sujeitos para o trabalho repetitivo e disciplinado da era industrial, deveríamos estar cultivando mentes preparadas para lidar com a complexidade, a inovação e a incerteza – capacidades que, como mostra a literatura científica e o pensamento de De Masi, nascem justamente no espaço simbólico e relacional do brincar.

Tudo isso não é abstração técnica; toca histórias concretas. Basta ir até um parque ou praça e observar crianças que correm livres, inventam histórias com folhas e galhos de árvore, criam regras e, sem perceber, leem mapas, praticam contagem e exercitam a empatia. Negociações, soma, revezamento, todas essas são ações que hoje chamamos de “competências socioemocionais e matemáticas iniciais”. O que parece uma brincadeira é, na verdade, uma oficina.

Por isso é equivocado substituir tempo de brincar por agendas inteiramente instrumentalizadas para atingir uma produtividade acadêmica precoce. Programas bem intencionados que “apressam” currículos sem espaço para brincar podem produzir ganhos de curto prazo em tarefas específicas, mas comprometer a criatividade, a motivação intrínseca e as habilidades sociais que sustentam aprendizagem ao longo da vida.

Há, claro, desigualdades no acesso ao brincar. Crianças em bairros com menos praças, escolas sem quintal e famílias sobrecarregadas por jornadas longas têm menos oportunidades de brincar livremente. Ao mesmo tempo, o crescimento da infância digital e a substituição de espaços externos por telas impõem desafios adicionais. Reduzir esse hiato exige políticas públicas (espaços públicos seguros, currículo que integre o brincar, formação docente para práticas lúdicas) e compromisso comunitário (preservar horários escolares que incluam recreio amplo, valorizar o brincar em agendas familiares).

O argumento de que “criança precisa aprender” não é oposto ao brincar; pelo contrário. Aprender é, muitas vezes, o brincar bem guiado. Isso significa oferecer ambientes ricos em material simbólico, tempo livre e acompanhamento adulto sensível. Não para controlar a brincadeira, mas para ampliá-la, apoiar conflitos e enriquecer narrativas.

Por fim, reivindicar que “o trabalho da criança é brincar” não é romantizar a infância, mas apontar que a atividade lúdica é o trabalho que constrói a alfabetização emocional, social e cognitiva. Defender o brincar é defender a saúde mental, a equidade e a qualidade da educação. Se queremos sociedades mais criativas, resilientes e empáticas, precisamos restaurar o brincar como prioridade nas escolas, nas cidades e nas casas.

*Damila Bonato é gerente de Marketing e Produto da Aprende Brasil Educação.