Sabe com quem está falando? (Paulo José Corrêa)

Paulo José Corrêa/Divulgação

Paulo José Corrêa

Eu era novo no Tribunal. A chefe do setor onde eu trabalhava mandou-me entregar um documento no gabinete de um Desembargador para que ele assinasse. Disse-me para falar que havia pressa na assinatura. Fiz como me foi ordenado e retornei ao meu posto de trabalho. Mal tinha chegado, quando ouvi:
— Quem foi ao meu gabinete dizer que havia pressa na assinatura deste documento?
O tom da voz do Desembargador não deixava dúvidas quanto ao nível de aborrecimento.
— Fui eu, doutor —, respondi.
— Nunca mais faça isso! Quem diz se um documento tem pressa ou não é o juiz. Um juiz não recebe ordens de um servidor.
— Está bem, doutor. Me desculpe.
Eu fui apenas o portador do recado ao Desembargador. Mas o incidente reforçou uma lição que aprendi ao longo da vida: precisamos saber quem pode dizer o quê a quem. O direito à palavra está condicionado à posição na estrutura social. Um antropólogo conta que entre alguns indígenas não se deve perguntar “quem é seu chefe?”, mas sim “quem é, entre vocês, aquele que fala? Senhor das palavras: esse é o nome que muitos grupos dão ao seu chefe”. (CLASTRES, Pierre. A Sociedade contra o Estado).
Para um estudioso da linguagem, ao dar aquele recado ao Desembargador eu não observei os “limites da interdição à fala” (FOUCALT, Michel. Citado em Linguagem e Moral). Para um jurista bem conhecido, eu cometi o que ele, ironicamente, denomina “crime de porte ilegal da fala”. (STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise).
Embora não fosse necessário que o Desembargador me dissesse aquilo pessoalmente, ele tinha razão. Na estrutura judicial algumas coisas só o juiz pode falar. E para outras nem mesmo ele tem esse poder. Só o juiz pode pronunciar uma sentença em um processo judicial. Mas, ele não pode dizer qualquer coisa na decisão; ele tem que se submeter aos limites à fala impostos na lei.
No meio religioso não é diferente. A hierarquia eclesiástica se reflete no poder de falar. Na Igreja Católica, isso é bem visível: por estar no topo da hierarquia, ao papa é atribuído o direito à palavra infalível. Palavra que condiciona o dizer nos demais graus hierárquicos. Mas, em grupos com hierarquia mais branda o princípio é o mesmo. Na igreja pentecostal de que fui membro, o direito à fala é mais aberto, porém controlado pelo líder. Se um pronunciamento divergir do que ele diz, o falante pode ser excluído do direito à palavra. Caracteriza-se o citado “crime de porte ilegal da fala”.
Na Bíblia também aparece essa interdição à fala, especialmente no caso das mulheres. O apóstolo Paulo o afirma claramente em cartas à igreja de Corinto e a Timóteo. Ele diz que, sendo a mulher natural e historicamente inferior ao homem, ela deve ficar calada nas reuniões e não pode ensinar o marido. (1ª Carta aos Coríntios, caps. 11 e 14; 1ª Carta a Timóteo, cap. 2). Assim também era nas assembleias dos gregos e na sinagoga judaica. Paulo estava aplicando ao cristianismo a visão cultural da época em que escreveu, visão que por séculos calou, e ainda cala, a voz feminina.
Essa secular proibição se introjetou na personalidade de muitas mulheres. Meu amigo, Dr. Álerson do Carmo Mendonça, Juiz da 1ª Vara de Violência Doméstica e Familiar de Vitória da Conquista (BA), conta um caso que ilustra isso. Em uma audiência, o Promotor de Justiça fez uma pergunta à vítima de violência doméstica. A pergunta do Promotor dava a ela o direito de falar. Mas, antes de responder, ela olhou para o Juiz Álerson e, com um visível temor reverencial, perguntou-lhe: “Posso falar, doutor?” (www.atarde.com.br). Ela teve receio de usar seu direito à fala. Esse medo encobre muitos casos de violência nas famílias.
O poder de falar é proporcional ao poder social. Junto com o conteúdo das palavras há também a comunicação da posição social do falante. O sermão de um padre ou pastor não é ouvido apenas pelo que contém, mas também porque o enunciador é uma autoridade religiosa. O mesmo ocorre com o pronunciamento judicial. Num ato de linguagem está embutida a relação de poder entre falante e ouvinte.
Apesar do incidente, sempre me relacionei bem com aquele Desembargador. Acho que ele não se recorda do episódio. Mas eu não esqueci. Daí em diante, passei a considerar mais seriamente os limites sociais ao direito de falar. E antes de exercer a liberdade de expressão prevista na Constituição Federal passei a me fazer aquela antiga pergunta: “Sabe com quem está falando?”

Paulo José Corrêa é mestre em Direito e pós-graduado em Letras

2 Comentários

  1. Muito bom!
    A materia ilustra bem a necessidade de cuidado com o que fala que devem ter os lideres politicos e religiosos, especialmente no ponto em que diz: o poder de falar é proporcional ao poder social.

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