“Veio para o que era seu, e os seus não o receberam. Mas a todos quantos o receberam, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus; a saber, aos que creem no seu nome”. (João 1.11,12).
O décimo primeiro verso do primeiro capítulo do Evangelho Segundo São João é considerado o mais triste da Bíblia: “Veio para o que era seu, e os seus não o receberam…”
O mundo havia sido cuidadosamente preparado por Deus para o advento do Messias. Chegada a plenitude dos tempos, quando tudo estava pronto, Deus enviou o seu filho, nascido de mulher, nascido sob a lei (Gálatas 4.4). Para essa preparação o papel de Roma foi muito importante, pois, com suas leis fortes, organização política estabelecida, estradas guarnecidas pelo exército, o que reprimia os assaltos e davam mais segurança aos viajantes, comerciantes da bacia do Mediterrâneo; havia paz na região.
A Grécia também contribuiu com sua mente intelectual, ajudando a destruir a crença dos gregos em seus inúmeros deuses que não foram capazes de livrá-los, preservar-lhes a vida e unidade política. No entanto, é exatamente em Israel que os propósitos de Deus se cumprem de forma cabal.
Israel, que sofrera diversos cativeiros ao longo de sua história, estava agora curado da idolatria, reconhecendo como seu único e soberano Senhor o Deus Jeová. Em contraposição ao politeísmo dominante nas nações vizinhas, Israel era monoteísta, seguindo ao Deus que Se revelara a Abraão ainda em Ur dos Caldeus, de quem originou a nação hebreia. Com os judeus estava a Torá, possuíam um sistema ético forte, de pureza e santidade mesmo porque o Deus a quem serviam havia advertido: “Santos sereis, porque eu, o Senhor Deus sou santo”. (Levítico 19.2). Crê-se que durante o cativeiro babilônico surgiram as sinagogas para a preservação da cultura e especialmente da língua hebraica; também, o senso de que o homem não estava solto no universo, Deus agia na história e através da história e tudo isso era essencial para estabelecer um ambiente propício à chegada daquele que seria o redentor de todas as nações.
A promessa da vinda do Messias era essencialmente judaica. Ele haveria de libertar o seu povo dos seus pecados e era esperado com ansiedade, pois os judeus acreditavam que fosse Cristo aquele que os libertaria do jugo romano, devolvendo-lhes o reino de Israel. Esperavam que ele lutasse, que pegasse em armas e como todo nacionalista inflamado se proclamasse o “salvador da pátria”, no entanto, quando a terra estava pronta para recebê-lo, nasceu em Belém da Judeia uma criança que haveria de alterar o destino da humanidade. E tal foi a exultação celestial que miríades de anjos iluminaram a noite escura, cantando e dando glória a Deus nas maiores alturas pela chegada do Messias.
Perseguido por Herodes, idumeu inimigo da linhagem de Cristo, o menino-deus refugiou-se, com seus pais, no Egito, para que se cumprisse o que fora dito pelo profeta: “Do Egito chamei o meu filho”, (Oseias 11.1). Retornando à sua terra, após a morte de Herodes, crescia o menino em estatura, graça e sabedoria diante de Deus e dos homens, (Lucas 2.52), chegando a confundir os doutores da lei aos doze anos, quando foi com seus pais ao Templo em Jerusalém e ali se deleitava em discutir os assuntos relacionados com o seu Pai. Manifesta-se ao mundo no exercício do seu ministério, aproximadamente aos trinta anos, quando é batizado por um relutante João Batista, que o identifica como “o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo” (João 1.29).
Mas os “seus”, os judeus, ainda não haviam atinado com a missão singular que o carpinteiro de Nazaré viera exercer. Presos aos seus preconceitos, suas tradições, radicalismos e legalismos desprezaram o dia da sua visitação.
A salvação vem dos judeus, mas eles não quiseram reconhecer a preciosidade do plano de Deus para sua nação. Em muitas ocasiões os líderes religiosos da época deixaram clara a intenção de matarem a Cristo, porque Ele incomodava, Ele chocava-se com os estereótipos dos fariseus, Ele quebrava as tradições, Ele conseguia confundi-los ao falar em público com uma mulher, como foi o caso da samaritana (raça híbrida que era considerada imunda pelos judeus). Jesus desafiou o legalismo quando curou doentes no sábado, quando comeu com pecadores, quando tomou crianças no seu colo e as abençoou, quando aceitou que uma pecadora lhe ungisse, quando atendeu o pedido de um centurião (gentio), quando confrontado com a morte do filho da viúva de Naim, quando devolveu seu amigo Lázaro à vida depois de quatro dias de morto! A natureza também estivera sob o seu controle algumas vezes; nada lhe escapava, nem o íntimo dos homens, pois ele sondava a particularidade de cada um.
Foi um homem cheio de zelo pela casa do Pai que entrou no Templo em Jerusalém e derrubou as mesas dos cambistas e açoitou-os, expulsando-os do local que seria “a casa do Pai” transformado em covil de ladrões e salteadores!
Ele conseguia ser popular e impopular ao mesmo tempo! Era amado por uns e odiado por outros. Era o cumprimento da profecia de Simeão, quando dissera a Maria: “Eis que este menino está destinado tanto para ruína como para levantamento de muitos em Israel, e para ser alvo de contradição”, (Lucas 2.34).
E esse menino, agora homem, dividia a opinião dos seus compatriotas. Muitos o admiravam, outros queriam vê-lo à distância. O sentimento de inveja grassava entre os principais judeus que conseguiram convencer o povo de que Jesus de Nazaré não passava de um blasfemo, inimigo de Roma, sedicioso e perigoso para o país. Aceitando a traição de um discípulo dele, prendem-no no Jardim do Getsêmani e começa um longo julgamento, culminando com a escolha mais desumana que alguém poderia fazer. Mais uma vez, o povo incitado pelos príncipes judeus, responde a Pilatos, o governador, que prefere um malfeitor a um homem íntegro e justo. Avocam para si e seus filhos a culpa pelo sangue inocente que possam estar condenando à morte. E Jesus seguiu para o Calvário.
Israel fizera a sua escolha e nela Jesus não estava incluído. Aqueles para os quais viera, inicialmente, pelos quais se esvaziara, tomando a forma de servo, sendo obediente até a morte de cruz, o rejeitaram, covardemente. “Veio para o que era seu…” Os judeus, seu povo, seus irmãos, compatriotas, participantes das mesmas promessas, alvo da mesma atenção divina, não o receberam… Por inveja o mataram… Não havia nele crime algum. Pilatos reconheceu.
Os judeus rejeitaram a maior dádiva com que foram agraciados, e certamente não sabiam o que estava a pedir quando disseram: “Caia sobre nós e sobre nossos filhos o seu sangue” (Mateus 27.25). Fechavam a porta da salvação para toda uma nação, rejeitavam o dom inefável de Deus, mas o povo que não participava diretamente da bênção de Abraão foi beneficiado por esse ato. A porta da graça se abria para todo aquele que não pertencia à linhagem abraâmica. E nós fomos alcançados pela graça, por esse favor imerecido, pelo sacrifício de um justo a fim de que fossemos restaurados à comunhão com o Deus Pai, nos tornássemos um enxerto na Videira verdadeira, tornando-nos ramos que precisam frutificar, vez que nós não o escolhemos, mas Ele nos escolheu a nós e nomeou-nos para que viéssemos a frutificar e expandir o seu Reino aqui na terra.
Quando Jesus bradou no madeiro: “Está consumado”, ele dizia ao Pai que a obra que lhe fora confiada estava realizada. Aqueles que o rejeitaram chorariam amargamente e um dia O reconheceriam como Messias e o pranteariam como quem pranteia por seu primogênito. Mas aqueles que O receberam, que lhe abriram as portas, aceitando sua morte vicária e reconhecendo-o como o Redentor, estes seriam feitos filhos de Deus.
O versículo que traduz a maior tristeza para os judeus, para nós, considerados gentios, alheios aos pactos e alianças de Israel, constitui-se a maior felicidade, porque Jesus, ao ser rejeitado pelos seus, foi acolhido pelo povo que o não chamava pelo nome. Essa filiação, esse pertencer à família de Deus nos fala da graça superabundante de que fomos alvo. A certeza de que ao nome de Jesus todo joelho se dobrará e toda língua confessará que só Ele é o Senhor para a glória do Deus Pai, coroa todo o horror sofrido na rude cruz.
Ao longo dos anos os judeus têm sentido pesar-lhes nos ombros a sua insensatez, resultado de uma escolha absurda e infeliz. Trocaram o Cristo por um salteador e continuam sendo saqueados, odiados, maltratados, desalojados, espoliados na sua dignidade de nação e de pessoas. A Segunda Guerra Mundial fica como um marco terrível da escolha que fizeram. O sangue do justo estava a clamar, como clama ainda hoje quando são vítimas de atentados, quando a morte assola e devasta jovens, velhos e crianças… Mas, o deserto floresceu, os olhos de Cristo pousam ternamente sobre o Seu povo, “a menina dos seus olhos”, na esperança de que num futuro bem próximo venham a reconhecer e exclamar com sinceridade: “Bendito o que vem em nome do Senhor!”
E a glória será completa quando reunir todos os povos – gentios e judeus – para celebrar a grande vitória sobre a morte, o mundo e satanás. Toda lágrima enxugada, a eternidade instaurada e o louvor para sempre na voz de todos os seres remidos e lavados pelo sangue do Cordeiro, “cujo número será de milhões de milhões e milhares de milhares, proclamando em grande voz: Digno é o Cordeiro, que foi morto, de receber o poder, e riqueza, e sabedoria, e força, e honra, e glória, e louvor. Aquele que está sentado no trono, e ao Cordeiro, seja o louvor, e a honra, e a glória e o domínio pelos séculos dos séculos. Amém.” (Apocalipse 5.12-14)
Luzelucia Ribeiro da Silva é professora, filósofa e teóloga.