Privatizar, ou não, eis a questão (Umberto de Campos)

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Canal Solar Apagão em São Paulo: consumidores têm direito a indenização?Quando eu era só um “guri”, lá no Rio Grande do Sul e morava “lá fora” – o equivalente a morar “na roça”, hoje, certa vez fui passar uns dias na casa de uma tia, na cidade grande. Lá conheci um serviço público muito fedorento, que era a coleta dos dejetos humanos das residências, estas dotadas de fossas. Os funcionários da Prefeitura que realizavam esse trabalho escatológico se chamavam cabungueiros. Passavam todos os dias e recolhiam o resultado fétido literalmente derramando o conteúdo de latões num compartimento de um caminhão.

De lá para cá muita coisa mudou. O saneamento livrou as cidades dos cabungueiros e do mau cheiro; ainda que nem todas.

A coleta de lixo era feita por funcionários do governo local. O fornecimento de água potável e energia elétrica eram governamentais. A segurança pública idem. Boa parte das escolas… Além da segurança, da conservação dos prédios públicos, a abertura e a conservação de estradas.

Acontece que depois de algum tempo, os governantes resolveram terceirizar tudo. A onda veio com a redemocratização, no final dos anos 80, do Século passado. Eu lembro dos primeiros argumentos. Dizia-se que os ascensoristas da Câmara dos Deputados, em Brasília, recebiam salários ao nível de assessores (em vez de ascensores). E os governantes, cada vez mais liberais, resolveram que poderiam terceirizar tudo, sob o argumento de que a iniciativa privada gerencia pessoas e recursos melhor que o poder público.

Nos últimos anos as privatizações de bancos estaduais, companhias de saneamento e energia estiveram na plataforma eleitoral dos políticos mais liberais.

Então veio o El Niño. São Paulo ficou debaixo d’água e os apagões foram inevitáveis. O que se esperava é que a empresa terceirizada de energia do Estado de São Paulo fosse tão eficiente quanto os argumentos que levaram à sua privatização. 

O inferno astral da ENEL começou com os extremos climáticos nunca reconhecidos pelos liberais e culminou com enchentes e um apagão sem precedentes, na cidade de São Paulo. O evento foi seguido de quedas pontuais de energia, no centro da cidade, denotando uma incapacidade recorrente da empresa para restabelecer o fornecimento em prazo razoável.

Um ofício do Ministro das Minas e Energia Alexandre Silveira à Agência Nacional de Energia Eletrica, datado de 1º de abril, no entanto, propõe até cancelar o contrato com a empresa de energia que cuida da maior cidade da América do Sul, São Paulo. A ENEL, curiosamente atende a um estado governado pelo ex militar, ex ministro e ultraliberal Tarcísio de Freitas.

No ofício, o ministro Alexandre Silveira pede à agência reguladora que responda se a prestação de serviços, pela ENEL, está sendo feita de forma “inadequada ou ineficiente”; se a empresa tem descumprido cláusulas do contrato; se a empresa “perdeu as condições técnicas ou operacionais para manter a adequada prestação do serviço”; e se a Enel deixou de atender determinação da Aneel para regularizar o fornecimento de energia.

Privatização x estatização desde sempre foi pauta de governos à esquerda ou à direita. Mas a discussão é complexa. O pior é que acontece às escuras.

Se, por um lado, os defensores da estatização pregam que não se pode demonizar a administração estatal (se ela é um problema, que se resolva a questão administrativa) há um problema ainda não resolvido, que é o custo (e a demora) para a contratação de um funcionário público via concurso, a estabilidade sempre discutida e o alto passivo previdenciário, após a aposentadoria do servidor.

Aos que defendem a privatização, todas as facilidades de contratação, possibilidade de demissão a qualquer tempo e previdência menos dispendiosa vêm em seu socorro.

Ao usuário, que costumava pagar à empresa estatal, se alguma coisa mudou foi o custo – sempre mais alto. Mas o que faz mais diferença é a própria prestação do serviço que, na percepção do consumidor sem é mais demorada e bem menos eficiente.

As modernas técnicas de gestão empresarial pregam que se deve fazer mais com menos. Se isto fosse possível, na prestação dos serviços públicos, certamente o transporte por concessão seria uma maravilha; as empresas de energia seriam mais ágeis e mais eficientes em resolver os problemas de falta de luz e os hospitais públicos privatizados ou geridos sem a mão governamental seriam verdadeiros paraísos. 

No Rio Grande do Sul, depois de um verão de extremos climáticos, além das enxurradas que destruíram cidades, outra enxurrada – a das críticas – colocou em xeque a privatização da CEEE. A medida fez parte da pauta liberalizante e foi trunfo político do governador Eduardo Leite.

Privatização ou estatização? Uma polêmica que parece bem longe de ser resolvida. O que não pode acontecer é que, enquanto se discute, a população fique às escuras.

Umberto de Campos é jornalista

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