Desencanto! (Josué Mendes)

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Josué Mendes/Divulgação

Eu faço versos como quem chora

De desalento. . . de desencanto. . .
Fecha o meu livro, se por agora
Não tens motivo nenhum de pranto.
                               Manuel Bandeira
Bem-vindo(a) ao “mundo desencantado”!
Refletindo sobre o tempo presente, procurei uma palavra que melhor traduzisse o sentimento de algumas pessoas, inclusive o meu. Inspirado em Manuel Bandeira, que aprendeu a ter uma vida comedida em razão de uma tuberculose com a qual conviveu sessenta e quatro anos, veio-me a palavra “desencanto”. Confesso que fiz considerável esforço para enxotá-la da minha mente; no entanto, como dizia Machado de Assis, algumas ideias são tais quais mosca de padaria: você a espanta, mas logo está ela, de novo, pousada sobre a guloseima.
Logo, resolvi explorar essa palavra para, a partir dela, tentar entender o que está acontecendo no mundo, em especial no Brasil. Achei-me no papel de “jornalista arrogante” ou de “sumo juiz”, os quais advogam para si a condição de intérprete único(a) das situações. Admito aqui que não dou crédito algum, nem audiência, a qualquer profissional “dono(a)” da verdade. A única verdade absoluta, diante da qual eu me curvo, está manifesta em João 14.6: “Eu [Jesus Cristo] sou o caminho, a verdade, e a vida…”.
Meu primeiro passo foi pesquisar a etimologia da palavra “encanto”, já que o “des” é prefixo negativo, e lá estava dito: “prendas agradáveis que enganam e iludem às vezes o sentimento acerca do objeto”. Portanto, “encanto” é ilusão, sedução ou feitiço; “desencanto”, por sua vez, é a perda da ilusão ou da sedução.
Seria, então, aplicável esse sentimento a Deus, nessa acepção? Pois, em Gênesis 12, Deus chama Abraão e diz: “vou fazer de você um povo exclusivo, sobre o qual repousará a minha bênção”. Mas lá em Êxodo 32, Moisés diz: “risque-me do teu livro, se não perdoares o teu povo”. Estaria o Senhor desencantado com Israel, naquele tempo e também nos dias de hoje?
A verdade é que nós nos desencantamos facilmente com tudo e com todos, especialmente quando a realidade se mostra diferente da almejada. É comum vermos desapontamento nos relacionamentos, na carreira profissional, nos projetos, na vida, enfim. Esse desencanto também abarca outras esferas, por exemplo: na “política”, onde residem nossas maiores frustrações, porque não nos sentimos representados por quem, de fato e de direito, deveria nos representar; na “justiça”, onde parece estar o nível mais sensível de desencanto, porque a instância que deveria nos salvaguardar está se distanciando da tão almejada “segurança jurídica” e do necessário “processo legal”; nas “instituições de ensino”, porque o processo de formação humana está envenenado por um viés que emburrece [faz perder a capacidade de discernimento]; na “família”, onde os papéis, às vezes, são confusos, o que gera conflitos, omissões e rompimentos…
Também estamos desencantados com a igreja, não com o corpo simbólico de Cristo, mas com a organização que se deixa contaminar-se pela prática de um “outro evangelho” e pelas bizarrices de seus líderes religiosos. Não estamos imunes das injustiças desse mundo, porque [estamos no mundo, mas não somos dele] e nossos valores excedem a uma vida de desalento e desencanto. A Igreja, na sua expressão mais genuína, precisa “prosseguir para o alvo, pelo prêmio da soberana vocação de Deus, em Cristo Jesus” (Filipense 3.14).
Em suma, o tempo presente parece querer nos levar para o mundo desencantado.
O poeta neoclássico Tomás Antônio Gonzaga, em seu livro “Marília de Dirceu”, já vaticinara: “Se vem depois dos males a ventura; vem depois dos prazeres a desgraça”. Ou seja, não há bem que sempre dure, nem mal que nunca se acabe (provérbio português). Isso quer dizer que o desencanto faz parte da vida porque nem sempre as coisas saem como planejamos. Todavia, é possível encontrarmos novos caminhos para recomeçar, certos de que “as misericórdias do Senhor são novas a cada manhã e grande é a sua fidelidade” (Lamentações 3.23).
Por outro lado, o desencanto pode ser uma oportunidade de reavaliação dos nossos objetivos, a fim de direcionarmos nossos esforços para algo que realmente traga satisfação e realização. Não existe momento melhor para essa reflexão do que na época do Natal, uma vez que nele celebramos o nascimento de Jesus Cristo, ao mesmo tempo nos colocamos disponíveis para um novo nascimento. Natal é renascimento de propósitos, de atitudes e de experiências; é momento de revisão de vida e busca de renovação e mudança.
Aí entra a faceta polissêmica da palavra “encanto”: maravilhamento, fascínio, empatia. Nesse sentido, devemos continuar “louvando a Deus e contando com a simpatia de todo o povo…” (Atos 2.47) porque “em todos eles havia abundante graça” (Atos 4.33). Enquanto isso, o Senhor, dia a dia, acrescentava os que iam sendo salvos. Os cristãos primitivos maravilhavam os seus contemporâneos, pois transbordavam em ações de comunhão e de transformação de vida.
Portanto, o desencanto não precisa ser o fim; pode ser o começo de algo novo e melhor. Precisamos tão somente aprender a não depositar nosso ânimo nos homens ou nos sistemas. Nossos olhos devem voltar-se para as coisas que vêm do alto, certos de que “a vereda do justo é como a luz da aurora, que vai brilhando mais e mais até ser dia perfeito” (Provérbios 4.18).
Eis, assim, uma boa oportunidade para a escrita de uma nova página no livro de nossa vida. Feliz recomeço!
Josué Mendes é professor, escritor e membro da Academia Evangélica de Letras do Distrito Federal – AELDF.

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