A pergunta do título é chocante por si mesma, mas tem, ao menos, dois contextos: primeiro, a sociedade em geral ainda tolera a disciplina física de crianças e, por isso, houve muita polêmica quanto a Lei Menino Bernardo (apelidada de Lei da Palmada), aprovada em 2014; o segundo, os evangélicos ainda dependem de uma leitura literal do livro bíblico de Provérbios, que menciona (e recomenda) o uso da “vara” na educação dos filhos. O primeiro contexto aborda a cultura da violência contra crianças e o segundo aborda o papel da religião na justificativa dos castigos físicos. Ambos se reforçam mutuamente.
Em 2014, foi amplamente propalado entre líderes evangélicos o educadores em torno da votação da Lei. De um lado, líderes, como Malafaia, atacavam a intromissão do Estado na autoridade dos pais sobre seus filhos. De outro, pessoas como a Xuxa, se levantava contra toda forma de violência contra crianças. Como pano de fundo, estava o drama de Bernardo Boldrini, de 11 anos, que fora morto pelo pai e pela madrasta. Enquanto Malafaia e seus apoiadores capitalizavam a lei para induzir o rebanho contra o governo popular, os parlamentares mexiam no vespeiro da cultura da violência física, do tipo “eu apanhei muito na infância e me tornei alguém”, “agradeço meus pais pelas surras que levei” ou “é falta de uma boa surra!”
Em 2020, quando o pastor Milton Ribeiro foi nomeado Ministro da Educação, as redes sociais repercutiram um pronunciamento em que o pastor defendia que a educação de crianças não pode ser suave, mas deve “causar dor”. Recentemente, um pastor do interior de São Paulo foi condenado pela justiça por incentivar os pais a baterem em seus filhos: “Bata, bata, bata e começou a querer morrer, você para. É o texto [a Bíblia] que diz.” Em sua defesa, alegou que sua fala foi tirada de contexto. Eu mesmo, como professor de Antigo Testamento, tive oportunidade diversas oportunidades de debater esse tema com os alunos, e constatar o apoio à educação violenta contra crianças como mandamento divino. São apenas alguns exemplos de leitura equivocada da Bíblia.
Os pais cristãos costumam levar a sério a educação de filhos, porque entendem que são responsáveis diante de Deus pela vida deles. Como todo cristão que se preza, consultam a Bíblia para saber como educar seus filhos e vão direto para o livro de Provérbios. O livro diz com todas as letras: use a “vara”. Então o pai ou a mãe vai no quintal, pega uma varinha de qualquer arbusto, arranca as folhas e a usa para impor sua autoridade. O problema é que não é isso que os sábios ensinavam aos pais. A “vara” mencionada em de Provérbios não é a “varinha” (ramo) de marmelo ou de qualquer arbusto, mas a “vara” do pastor, o cajado, um bastão longo, como mencionada no Salmo 23: “tua vara e teu cajado me consolam”. Ora, como a “vara” poderia ser um consolo?
Enquanto a nossa palavra “vara” tem vários significados, o hebraico usa diferentes palavras para cada significado. Para se referir a “vara” (ramo), a palavra é hotter. Ao contrário, a “vara” do pastor (shebet ou matteh) era usada para caminhar, para se defender, para conduzir o gado etc. Era também símbolo de autoridade! Por isso, 75% das ocorrências da palavra shebet no AT são traduzidas como “tribo”, provavelmente porque o chefe da tribo usava um bastão como símbolo da autoridade, assim como o rei usava o “cetro” com o mesmo sentido. A palavra hotter (ramo) nunca é usada para educação, mas para punição de certos crimes praticados por adultos e, mesmo assim, no limite de até quarenta golpes. A propósito, até hoje, em certos países do Oriente, a pena de açoites ainda é aplicada.
Então, a questão é: será que os sábios estavam ensinando os pais a baterem em seus filhos com um bastão (vara/cajado)? Ou será que eles estavam pensando na “vara” como símbolo de autoridade paterna para conduzir e ensinar o caminho a seus filhos? A resposta é evidente. Não há, em nenhum lugar das Escrituras, a recomendação de usar violência física contra filhos, mas, sim, a ideia de pastorear seus filhos como um pastor faz com as ovelhas do seu rebanho.
Além disso, é necessário enfatizar que o livro de Provérbios não fala apenas em “vara” (cajado) para educação de filhos, nem é único livro que trata do tema. Os sábios de Provérbios também orientam os filhos: “ouve o ensino do teu pai e não deixes a instrução [torah] de tua mãe” (Pv 1.8; 6.20). Ou seja, a educação de filhos é responsabilidade de pais e mães igualmente e os filhos devem ouvir e respeitar a ambos — um desafio tão moderno!
A questão é tão importante que consta nos dez mandamentos: “Honra teu pai e tua mãe” (Ex 20.12; Dt 5.16). Moisés também orienta os pais dialogarem com seus filhos: “Que todas estas palavras que hoje lhe ordeno estejam em seu coração. Ensine-as com persistência a seus filhos. Converse sobre elas quando estiver sentado em casa, quando estiver andando pelo caminho, quando se deitar e quando se levantar” (Dt 6.6-7). O texto fala de presença, companheirismo, conversa, diálogo, tudo isso ocorrendo no lugar da vida.
Os pais deveriam contar a seus filhos a história do povo, cultivando o senso de pertença à comunidade: “Quando teu filho te perguntar no futuro, dizendo: Que significam os testemunhos, e estatutos e juízos que o Senhor nosso Deus vos ordenou?” (Dt 6.20). “E quando teu filho te perguntar no futuro, dizendo: Que é isto? Dir-lhe-ás: O Senhor nos tirou com mão forte do Egito, da casa da servidão” (Ex 13.14). Em um mundo hostil com as crianças, que envolvia inclusive sacrifícios aos deuses, os pais e mães israelitas eram ensinados a criar seus filhos como membros da aliança, transmitindo para eles a cultura e a fé de seu povo.
Nos dias do Novo Testamento, é possível que os judeus fossem, por influência da cultura greco-romana, mais rígidos com as crianças, mas são notórias as palavras de Jesus em defesa delas. Quando os discípulos estavam disputando lugares de honra, Jesus chamou uma criança e a colocou como padrão de dignidade no reino de Deus, advertindo: “Quem não se tornar como criança, de modo algum entrará no reino de Deus” (Mt 18.3). E quando os discípulos estavam impedindo as crianças de se aproximarem de Jesus, ele os repreendeu: “Não os impeçais, porque deles é o reino de Deus” (Mt 19.14). Paulo seguiu na mesma linha ao citar a lei de Moisés na Epístola aos Efésios e acrescentar: “vós, pais, não provoqueis vossos filhos à ira, mas criai-os na disciplina [paideia] e na admoestação [nouthesia] do Senhor!” (Ef 6.4; c/c Cl 3.21).
Portanto, os pastores e mestres evangélicos, como Malafaia, Milton Ribeiro e esse de São Paulo, têm todas as condições de ler corretamente os textos bíblicos e de ensinar as pessoas sob sua influência a cultivarem uma educação sem-violência. Em vez de recorrerem à Bíblia para manter uma cultura de violência contra crianças, eles deveriam saber que os ensinamentos bíblicos são sempre em favor da dignidade humana, especialmente dos mais vulneráveis.
Portanto, não há nenhuma contradição entre o ensino bíblico sobre educação de filhos e a “Lei da Palmada”. Pelo contrário, a lei só existe porque a sociedade não conseguiu superar a violência contra crianças. A lei existe para que nunca mais os “Bernardos Boldrinis” e as “Isabellas Nardonis” sofram nas mãos daqueles que os deveriam educar e proteger.
Concluindo, a resposta à pergunta tema deste artigo é um enfático “não!” A Bíblia não manda bater em crianças. Ela determina que pais e as mães eduquem seus filhos com dignidade e que os filhos de qualquer idade devem honrar seus pais. Tomara que os cristãos brasileiros entendam isso e assumam a vanguarda na proteção das crianças!
Eliseu Pereira é mestre e doutor em Teologia, membro da Igreja Liberta em Curitiba-PR e administrador do canal Teologia Pé no Chão.