O turbinado carnaval da Bahia reservou, este ano, uma cena totalmente inesperada. Do alto da arquibancada e de um trio elétrico, as cantoras Baby do Brasil e Ivete Sangalo protagonizaram um debate pra lá de surreal. “Todos atentos porque nós entramos em apocalipse. O arrebatamento tem tudo para acontecer entre cinco e 10 anos”, bradou Baby do Brasil aos carnavalescos que dançavam freneticamente na avenida. “Eu não vou deixar acontecer, porque não tem apocalipse certo quando a gente maceta ele” , rebateu Ivete, numa clara contestação à fala da colega de espetáculo.
Não é a primeira vez, nem será a última, que temas de fundo religioso têm sido expostos em ambientes pouco convencionais para esse tipo de abordagem. O carnaval do Rio, por exemplo, já serviu de palco para a satirização debochada da pessoa de Jesus Cristo e seus seguidores. Outro exemplo carnavalesco, de uso inapropriado da religião, ocorreu no ano passado quando a Gaviões da Fiel utilizou o slogan “Em Nome do Pai, dos Filhos, dos Espíritos e dos Santos” como tema-enredo para seu desfile no carnaval paulista.
As estatísticas indicam que a maioria dos brasileiros possui uma tendência de apego à religiosidade. Provavelmente este seja o motivo da temática religiosa estar ocupando espaços cada vez mais amplos, seja no sentido de valorizar a espiritualidade humana, ou mesmo como afronta ou contestação às diversas correntes ou tendências religiosas.
Uma pesquisa, publicada em 2018, aponta que 79% dos brasileiros entendem que um candidato à Presidência da República precisa crer em Deus.
Tendo por base tal informação, verifica-se que muitos candidatos usam e abusam na exploração de discursos religiosos apenas como marketing político, pois não desejam ficar mal na fita diante dos eleitores mais fervorosos. Houve até um caso bastante emblemático em que a simples recusa de mencionar o nome de Deus acabou sendo interpretado como sinal de oposição à fé popular. Foi o que ocorreu com Fernando Henrique Cardoso, em 12 de novembro de 1985. Durante o último debate na TV entre os candidatos à Prefeitura de São Paulo, o então senador hesitou em responder a uma simples pergunta do jornalista Boris Casoy sobre sua crença em Deus. Os analistas políticos, à época, entenderam que, por não ter declarado sua fé em Deus (só o fez mais tarde), FHC perdeu a eleição para Jânio Quadros.
Outro fato, registrado pela imprensa, envolveu a figura do político mineiro Tancredo Neves enquanto disputava, contra Paulo Maluf, a eleição indireta para a Presidência da República no Colégio Eleitoral. Tancredo teria declarado que, se tivesse um determinado número de votos do PDS (partido do governo militar), não ia precisar nem da ajuda de Deus para se eleger. Ele realmente foi eleito, mas não chegou a tomar posse, pois uma grave infecção acabou levando-o a óbito antes de subir a rampa do Palácio do Planalto.
Este ano teremos novamente eleições municipais e não será difícil prever quem estará de volta aos palanques. Aliás, a corrida entre deuses e demônios, na disputa acirrada pelos votos de fiéis e infiéis, já está em pleno andamento. A prova mais evidente do nível de tensão que envolverá a próxima campanha pode ser claramente percebida diante da iniciativa do pastor Silas Malafaia em convocar, para o próximo dia 25, um grande ato religioso em favor do ex-presidente Jair Bolsonaro. Segundo Malafaia, o financiamento para o evento não contaria com dinheiro público, mas com “recursos da própria entidade religiosa” dirigida por ele. Algumas das mais conhecidas lideranças evangélicas estão divididas entre participar; não se envolverem ou, em alguns casos, até mesmo em criticar duramente o evento. Em vídeo divulgado nas redes sociais, o pastor Alexandre Gonçalves denuncia que “Silas Malafaia, está usando dinheiro do dízimo dos irmãos, que dão com muito sacrifício e amor a Deus, para atos políticos”. Pressionado, Malafaia mudou a versão e afirmou que “vai bancar os custos do próprio bolso”. Sua expectativa é reunir cerca de 300 mil pessoas na av. Paulista, em São Paulo.
Desde o fim das mobilizações em frente aos quartéis, após as eleições de 2022, não se via nenhuma tentativa de politizar a fé ou de espiritualizar a politica. As únicas manifestações político-religiosas têm sido aquelas deflagradas pela chamada Bancada Evangélica na Câmara e no Senado. Seus parlamentares defendem, entre outras pautas internas, o não pagamento de imposto de renda pelos pastores; reclamam das falas do presidente Lula em relação aos ataques de Israel na Faixa de Gaza, dando o tom do quanto as questões de interesse exclusivo do segmento evangélico são priorizadas pela bancada.
Tais pautas trazem consigo a base argumentativa para alimentar os discursos voltados a demonizar sistematicamente os adversários (no caso o governo Lula) e a beatificar os amigos (ou seja, Bolsonaro e seus aliados).
A mensagem da Bíblia parece não ser suficientemente relevante para impedir o uso e o abuso do nome de Deus em um ambiente tão marcado pelas controvérsias. O mandamento bíblico de “não usar o nome do Senhor teu Deus em vão”, parece ter ficado esquecido em alguma página do Antigo Testamento, enquanto a luta pela conquista do poder político, mediante a cooptação do voto dos fiéis, parece justificar o vale-tudo para trazer de volta ao palco a força da religião, não como elemento de natureza espiritual ou teológica, mas como mero instrumento de domínio e de poder político.
Peniel Pacheco é Pastor e Professor de Teologia