Pérola das ruas: o homem por trás das vestes. (Ana Carla)

Ana Carla/Divulgação

“Que verdades traz o homem indigente que perambula pelas ruas, sob as calçadas frias, esquecido e invisível aos olhos da sociedade? Que essência habita para além das vestes que o olhar do mundo, com seus antolhos, se recusa ver?”

Há alguns anos, li o livro O Futuro da Humanidade, de Augusto Cury — uma obra fictícia que narra a trajetória de Marco Polo, um estudante de Medicina, que, durante uma aula de anatomia, questiona seu professor sobre a identidade de um cadáver utilizado para estudos. O professor, de forma indiferente, responde que o corpo não possuía nome ou sequer história, tratava-se, tão somente, de um indigente. Tal resposta despertou em Marco Polo uma profunda inquietação pela forma como a condição humana fora tratada naquele momento, iniciando assim uma busca valiosa.
No decorrer de sua jornada descobre que o cadáver se tratava de um morador de rua, conhecido como “poeta da vida”, cuja identificação só fora possível graças a um outro morador de rua apelidado de “Falcão” que, surpreendentemente, o inclinaria a enxergar além das aparências, desafiando-o a repensar sobre seus conceitos de humanidade e valores sociais.
Embora se trate de uma narrativa fictícia, a obra suscita uma significativa reflexão acerca do homem marginalizado, o transeunte das ruas dos grandes centros urbanos que, na maioria das vezes, sob o olhar social, é visto como “zé-ninguém” — alguém sem valor ou influência no contexto em que vive. Esse livro traz, em suas camadas, reflexões acerca do julgamento, da empatia, da humildade, da simplicidade e acima de tudo do real sentido da humanização.
Enxergando além das páginas do livro, quem é o homem às margens? Qual a sua história? Qual sua relevância? Tais indagações me fizeram recordar de um homem que certa vez vi sentado sob a sombra de um prédio: um sujeito intrigante, de roupas puídas e olhar melancólico. Observei de forma profunda aquele personagem do cotidiano que destoava, completamente, das pessoas apressadas que transitavam por ali, elegantemente trajadas, e dos prédios com suas fachadas reluzentes que compunham a beleza da Capital.
Aquele homem causou-me certa inquietação, chamando, silenciosamente, a minha atenção. Com isso, buscando uma maneira sutil de me aproximar, comprei-lhe um café e, então, caminhei em sua direção. Ele, ao me ver, ergueu os olhos com suas pupilas desconfiadas, sem entender a razão do meu inesperado contato — confesso que também nunca consegui explicar ao certo o que me levou a essa aproximação.
O cumprimentei com um bom dia e entreguei-lhe o café. Solícito, ele me sorriu e o aceitou. Iniciamos uma breve conversa, rompendo-se uma fina camada de preconceito que nos separava. Aquele sujeito franzino, de nome Cláudio, era uma valiosa pérola, que por circunstâncias da vida e escolhas talvez equivocadas tornara-se morador das ruas de Brasília.
Naquelas calçadas, em meio ao vai e vem frenético das pessoas, tive o privilégio de conhecer um poeta, ouso dizer: o verdadeiro poeta da vida. Seu vocabulário ornado e surpreendentemente rico mostrou-me certa erudição. Suas palavras foram um bálsamo para o meu dia, e os meus ouvidos foram, certamente, um abraço caloroso em sua alma.
Essa sublime experiência marcou-me intensamente. Me vi refletindo sobre cada palavra da frase de Robert Lee Frost, poeta estadunidense, que diz: “Antes de construir um muro pergunto sempre quem estou murando e quem estou deixando de fora”. Posso afirmar que nunca me conformei com a ideia de olhar o outro de forma rasa, sempre vi a urgência de enxergá-lo de uma forma mais profunda e humana. É fácil admirar um diamante, mas, provavelmente, não se veja beleza na pedra bruta e, certamente, não haja, de fato, até que ela seja lapidada.
Quantas dessas “pedras” passam despercebidas por nós, todos os dias, nas ruas? Cada ser humano carrega consigo uma história, guardada na bagagem oculta do próprio eu. Quantas pessoas anseiam por um simples olhar de amor e compaixão? E não deveria esse olhar ser o ponto de partida das nossas ações? Contudo, parece que muitos vivem enclausurados em suas bolhas sociais. O que se vê, frequentemente, são pregadores de um amor teórico, um amor engessado em letras frias, condicionado à conveniência. Não é o amor concreto e vivo que o próprio Cristo revelou ao mundo.
Enxergar no outro a sua humanidade, é dar passos significativos rumo ao crescimento pessoal e espiritual. O reconhecimento mútuo e a valorização da dignidade humana, independentemente da situação social, geram diversos impactos positivos, tanto na busca por uma sociedade mais pacífica e justa, quanto na superação do preconceito que, consequentemente, incidirá na inclusão social das pessoas marginalizadas.
No relato da minha própria experiência em enxergar o outro com profundidade, demonstro a grandeza escondida em cada ser. Durante aquela conversa com Cláudio pude perceber o brilho em seus olhos, como se fosse nos olhos de uma criança, ao ser ouvido e seu inestimável sentimento de ser notado. A cada palavra que tecia a sua história eu enxergava ainda mais a sua alma, as suas dores e a sua sabedoria. Era como se eu fosse uma mera aprendiz, naquele instante.
Isso levou-me a enxergar de forma mais sensível, profunda a grandiosa o real sentido de amar o próximo. Amar o próximo é escancarar os olhos da própria alma, descer dos pedestais da vaidade e tratar as pessoas como o mesmo respeito, zelo e compaixão que se tem por si mesmo. Como se pode amar, considerando a ausência de um olhar humano de compaixão e desejo de fazer alguma diferença na vida do outro? Quantos “Cláudios” ansiando serem vistos e ouvidos por uma sociedade que os coloca às margens diariamente? Quantas histórias de vida, quantas mentes fascinantes, transitam por aí, invisíveis?
Com atenção e empatia o próprio Cristo via, além das aparências, a condição humana de cada ser. Ele acolhia aqueles que a sociedade rejeitava e, de fato, o Cristianismo e a própria figura de Jesus nos evangelhos são marcados por gestos de inclusão e compaixão. Ele frequentemente se aproximava e oferecia dignidade a pessoas que eram marginalizadas ou consideradas “impuras” pela sociedade de sua época.
A partir dessa singela reflexão, convido você a ponderar o quão raso e negligente tem sido o seu olhar diante daqueles cuja identidade e história lhe são desconhecidas. Reflita se o seu conceito de amar o próximo vem do coração de um verdadeiro seguidor de Cristo ou da conveniência de um homem vaidoso, cujo amor é, meramente, condicional.

Ana Carla é escritora e poetiza.