O Escritor Anônimo (Judson Santos)

Judson Santos/Divulgação

Algumas fatias de queijo, frutas e o jarro de vinho dividem a mesa com a inspiração do escritor da carta aos hebreus.

No início da carta, o escritor anônimo conduz a palavra para a pluralidade da comunicação. O escritor não explica essa complexa pluralidade. Mas traz à fé no Filho o protagonismo da salvação. Desviando-se do exclusivismo dos hebreus, cutuca o vespeiro com vara curta. Consciente do perigo para os hebreus cristãos, o escritor oferece esclarecimentos pontuais.
Os olhos do escritor começam a pesar, pedem uma noite de descanso. Ele estende uma manta, ajoelha em reverência ao Altíssimo e deita o corpo cansado, próximo aos jovens discípulos que o visitam quase todos os dias.
No dia seguinte, o mestre acorda antes de raiar o sol. Os discípulos bebem o chá de hibisco com nozes, atentos ao que o mestre vai ensinar. O escritor prefere comentar os significados das parábolas de Jesus.
Um discípulo pergunta:
— Por que o Messias, o ungido de Deus, não nasceu em Jerusalém? Belém é apenas uma inexpressiva aldeia.
O escritor mantém o semblante sério, se levanta sem responder à indagação do discípulo. Os seus passos lentos atravessam a sala, procura alguma coisa sob olhares curiosos dos jovens aprendizes. Por fim, encontra o que procura: uma cópia do texto do profeta Miqueias. O mestre chama os discípulos:
— Aproximem-se! Escutem! Ouçam como Deus transforma o nosso critério de grandeza. O profeta falou: E tu Belém-Efrata… Belém, cidade politicamente insignificante?
Todos respondem:
— Sim!
— Efrata é uma região sem nenhuma relevância?
— Sim!
— Pois, bem… Deus também transforma pessoas insignificantes em pessoas de alto valor — prostitutas, donas de casa, ladrões, viúvas, cegos e leprosos — e as coloca na rota de salvação do mundo. As medidas de grandezas de Deus têm a extensão dos significados e propósitos divinos.
O mais velho dos discípulos ignora a explicação e faz outra pergunta, desta vez, bem ardilosa:
— Quem tem mais autoridade? Moisés ou Jesus?
— Esta pergunta já foi respondida pelo nosso apóstolo: O fim da Lei é Cristo.
— Então… Jesus pisou em cima da Lei?
O escritor, quase irado, repreende o discípulo:
— Use melhor as palavras! O evangelho não é ruptura; as palavras dos profetas se confirmaram no Filho.
Tensão e silêncio no ambiente.
Na semana seguinte, os discípulos souberam que o escritor foi levado às escondidas pelos oficiais romanos, orientados pelos intérpretes da Lei. Os discípulos correm até a casa do escritor para conferir.
— Mestre! Mestre! Estais em casa?
Algumas horas se passam. O escritor chega em casa escoltado por cinco soldados. Atrás deles, os interpretes da Lei observam. Os soldados desamarram o escritor. Um deles faz uma ameaça, cochicha em seu ouvido:
— É melhor mudares de cidade.
Os soldados vão embora, os intérpretes da Lei também se afastam. O escritor tranquiliza os jovens discípulos:
— Isto foi uma denúncia que exigiu explicações. Nada mais.
Um discípulo mostra revolta:
— Quem é o traidor infiltrado em nosso meio?
O escritor pede calma.
— Calma! Evite fazer acusações.
— Agora entendo por que essa carta deve ser mantida em absoluto segredo.
O escritor convida os amigos a se acomodarem. O discípulo questionador murmura:
— A fé cristã ocupa o espaço que pertence à Lei.
Esse comentário influenciou outros discípulos:
— Não vai ser fácil “substituir” Moisés por Jesus.
— É impossível convencer hebreus a anularem o sábado.
O mestre e escritor ouve tudo, porém, sem interferir:
No dia seguinte, o mestre e seus discípulos estão comprando alimentos. Os jovens o seguem. Enquanto escolhe os melhores frutos, o escritor fala de Jesus.
— Com a morte de Jesus na cruz, tudo indicava que o evangelho tinha fracassado. Ele sofreu a rejeição dos judeus. A entrada de Jesus na cidade de Jerusalém foi hilariante. Muitos riram do sonolento jumentinho. Gritos e aplausos, nada disso deu resultados.
Em sua casa, o escritor tira as frutas da sacola e distribui entre os discípulos.
— Acomodem-se! Fiquem à vontade.  Vou preparar o almoço.
Um discípulo pede a palavra e pergunta para o escritor sobre o sábado, uma Lei sagrada.
— Jesus anulou o sábado?
— Não anulou! Ainda resta um repouso para o povo de Deus.
Um suculento almoço com tâmaras e bolo de milho são servidos. Ele chama o discípulo mais velho do grupo, aproxima-se olho no olho e diz:
— Se existe fé, há esperança naquilo que não se vê. O propósito da fé é este: dar garantia de entrada na vida eterna.
Os discípulos iniciam aplausos. O escritor recusa. Os discípulos são unânimes ao insistirem para que o nome do escritor esteja registrado na carta aos hebreus.
— Disto resulta sua liderança das igrejas cristãs desta região.
O escritor sorri e recusa a sugestão do discípulo.
— Vocês são amáveis! A igreja não precisa tanto de líderes quanto de pastores que cuidem de ovelhas. Eu recuso a sua proposta. Isto é, se Deus não falar diferente comigo. Enquanto isto, prefiro terminar a carta aos hebreus e continuar sendo um escritor propositalmente anônimo.
Judson Santos é Escritor, Professor e Membro da AELDF
Academia Evangélica de Letras do DF.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *