Falar sobre si mesmo (Paulo José Corrêa)

Paulo José Corrêa

​”Fale-me de você” é o pedido que geralmente se ouve em uma entrevista de emprego. Ou numa conversa com aquela pessoa na qual há interesse para um relacionamento. Quem não gosta de falar de si mesmo? Na verdade, temos necessidade disso. As redes sociais estão aí para provar: por palavras ou por imagens estamos sempre dizendo “eu sou assim”, “eu tenho tais qualidades”, “eu estudei tal assunto”, “eu faço isso e aquilo” etc.

    ​Mas, conseguimos ser verdadeiros ao falar sobre nós? Essa é uma tarefa muito difícil. Nossa autodescrição será filtrada em razão de quem está nos ouvindo, da natureza da conversa e do nosso interesse. Como abrir-se inteiramente para a pessoa que se quer conquistar? Ou para o entrevistador da empresa em que se busca o emprego? Nos descreveremos de um modo que não deixe transparecer o que essas pessoas poderiam reprovar. Recentemente ouvi o escritor Ruy Castro dizer que quando uma pessoa famosa lhe pediu que escrevesse a biografia dela ele recusou porque só escreve biografia de pessoas mortas. Motivo: as pessoas vivas nunca deixariam constar da biografia fatos desfavoráveis à imagem delas.
  O relato bíblico sobre o fariseu e o publicano ilustra essa autodescrição seletiva. Ambos foram ao templo para orar. O primeiro queria a aprovação de Deus e, por isso, em sua prece listou suas qualidades: “Não sou avarento, nem desonesto… jejuo duas vezes por semana e te dou o dízimo de tudo quanto ganho”. O publicano buscava a misericórdia divina e para isso falou de seus pecados: “Ó Deus, tem pena de mim, pois sou pecador!” (Evangelho de Lucas, cap. 18). Certamente o publicano também tinha virtudes, mas não as mencionou; e o fariseu tinha pecados, mas não os relatou.
​Não conseguimos falar a verdade sobre nós também porque não nos conhecemos inteiramente. No pórtico de entrada do templo do deus Apolo, na cidade de Delfos, na Grécia, estava escrito: “Conhece-te a ti mesmo.” Esse é um desafio enorme porquanto parte do que somos não é acessível à nossa consciência. Outra parte é percebida por nós de um modo diferente de como é visto pelos outros, assim como não ouvimos a nossa própria voz como os outros a ouvem. Qual imagem de nós está correta: a nossa ou a dos outros? Há um ditado japonês que diz: “o olho não vê a si mesmo, como a espada não corta a si mesma”. Nós não conseguimos nos ver por inteiro. Na visão bíblica, só Deus tem a exata percepção do que somos, só ele consegue nos conhecer totalmente.
Além disso, vivemos em uma época em que, segundo estudiosos do comportamento, os seres humanos estão experimentando uma crise de identidade. Diz um desses estudiosos: “Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas. (…) A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia.” (A Identidade Cultural na Pós-modernidade, p. 13). Ou seja, as pessoas estão tendo dificuldade para saber quem realmente são.
E quem conhece completamente a própria história? Não há como lembrar exatamente o que vivemos em nossa infância, por exemplo. Temos uma memória fragmentada desse e de outros períodos da nossa vida, trechos reconstruídos pela nossa visão atual das coisas e recoloridos pelo tempo. Juntam-se a isso as falsas memórias, fenômeno já bem estudado na área da psicologia. Com isso montamos uma narrativa pessoal verdadeira apenas em parte. Uma colcha de retalhos do nosso passado, costuradas com um pouco de ficção, eis o que contamos sobre nós. Ser fiel à realidade ao contar a nossa história é missão impossível.
Por tudo isso, na próxima vez que nos disserem “fale-me de você” lembremos que, por mais que desejemos, nunca conseguiremos dizer a verdade sobre nós.
PAULO JOSÉ CORRÊA é pós-graduado em Letras e mestre em Direito.

2 Comentários

  1. Paulo, parabéns pelo divã! Você é um bom psicanalista! Texto sem palavras complicadas, leve, objetivo e sem tropeçar na vaidade, mostra-se um ótimo observador do comportamento humano.

  2. Tatiana Francisca Cristina Marques Javala

    Excelente artigo Paulo. Parabéns
    Nunca chegaremos a entender e muito menos descrever a plenitude de quem somos.

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