Lá pelos idos de 1997 ou 98 assessorei a Polícia Militar do Distrito Federal. Era o governo do professor Cristóvam Buarque. Lá, aprendi muito do que não sabia ou nem imaginava sobre a própria PM e fundamentos que norteiam (ou deveriam nortear) o trabalho desses profissionais da segurança.
Entendi, por exemplo, sobre as questões de medo que esses profissionais enfrentam e como as enfrentam. O porquê das ações em grupo e até do uso da violência, quando necessário. Já naquele tempo, o volume de profissionais afastados por questões psicológicas era bastante alto, na Corporação.
Uma das coisas que aprendi, por exemplo, foi sobre a arma mais comum, utilizada pelo policial, naquele tempo: o revólver calibre 38.
Essa arma possui um poder de fogo bastante alto, em abordagens. Naquele tempo estavam desaparecendo os calibres 32 e 22. Este último, uma bala minúscula, era considerado muito ruim para qualquer defesa. Caso houvesse uma briga, por exemplo, um tiro de 22 poderia causar um ferimento aparentemente sem consequências no oponente. O atingido poderia reagir com uma faca e depois morreria lentamente de hemorragia interna.
Já o projétil de calibre 38 era mais eficiente, por seu enorme poder traumático. Em tese, um policial ao se defender, poderia parar o oponente com um tiro no joelho que inutilizado evitaria qualquer possibilidade de reação.
Não era exatamente o que ocorria. Mas o treinamento dos policiais era feito nessa linha.
Acontece que o Brasil cresceu. O crime se modernizou. No Rio de Janeiro, São Paulo e tantos outros estados, os policiais passaram a enfrentar com pistolas; criminosos armados com metralhadoras e fuzis pesados.
Era preciso rever a questão do armamento.
Na guerra vale tudo. Mas na questão da segurança pública, a função do policial não mudou. Oferecer uma sensação de segurança, com o policiamento ostensivo e estar preparado para evitar tragédias em confrontos onde a população fica exposta.
Não é o que se vê.
Policiais escolhem uma profissão arriscada; mas é verdade que ninguém quer, nem deve morrer por isto.
O problema é que a filosofia policial mudou. Ao lidar com a vida e a morte diariamente, a sensibilidade do ser humano se modifica. Assim como os médicos, enfermeiros, bombeiros funcionários de IMLs ou os coveiros. É preciso lidar com a morte e a tragédia.
Não concordo quando alguém chama uma pessoa que lida profissionalmente com tragédias de psicopata, por sua suposta insensibilidade. A psicopatia é outra questão. Mas também é verdade que o profissional armado abandonou as filosofias básicas de oferecer segurança à população e adotou uma filosofia agressiva e violenta que vem se expandindo, no Brasil.
Bandido bom é bandido morto. Ou a filosofia do ex governador Wilson Witzel… “tem que atirar na cabecinha”.
Governantes que aceitam essas teorias acabam permitindo que seus comandados usem deliberadamente a violência, com a desculpa de oferecer segurança aos chamados homens de bem.
O problema é que essa filosofia há muito vem sendo é disseminada dentro dos quartéis. O estado de Goiás, por exemplo, tem sua PM frequentemente nas manchetes, pela truculência e violência de seus policiais. O último caso, é o de um goleiro atingido por um projétil de borracha – menos letal, é verdade – mas não menos agressivo, em termos de consequências médicas para a pessoa atingida. Tiro é tiro. É razoável acontecer um disparo numa briga de futebol?
A celebração interna, de um batalhão da polícia de São Paulo cantando em prosa e verso o massacre do Carandiru é outro exemplo. As operações letais para a população. Tudo isso mostra que existe um “modus operandi”, um pensamento que se dissemina dentro das corporações. Um pensamento violento, machista, agressivo… que faz do policial aquele que se considera no direito de substituir toda a justiça do país.
Ele acredita que cabe a ele, investigar, decidir quem é bom ou mau, julgar e executar o criminoso por ele escolhido. Afronta o direito mais clássico. Passa por cima da polícia judiciária, – não menos letal – passa por cima dos tribunais e cria a figura não existente em nosso código penal da pena de morte.
Preconceito puro, posto que as maiores vítimas desse sistema corrompido são os negros e os pobres de nosso país.
As notas de esclarecimento – e eu não tenho nada a ver com isto – são sempre na linha de que a corporação não “compactua com desvios de conduta eventualmente praticados por seus membros”. Pouco se lê, ouve e vê sobre as conclusões e sanções decorrentes desses inquéritos.
A prática pública do policiamento ostensivo também é estranha no cumprimento da lei. O mau exemplo às crianças e adolescentes é flagrante. Em vez de serem educadas pelo exemplo dos policiais… o que nossas crianças veem são viaturas estacionadas sobre a grama ou a calçada, especialmente onde o cidadão, se estacionar, será multado.
A justificação da lei que proíbe estacionar sobre os gramados ou trafegar sobre calçadas vale para o meu carro e para o carro ocupado pelo policial… normalmente não vai aguentar o peso de um automóvel. Mas as viaturas andam por sobre calçadas em policiamento normal, sem operação de perseguição e – o que mais me chama a atenção: adoram deixar de ser ostensivos e trafegam à noite com todas as luzes das viaturas apagadas. Belo exemplo.
Outro dia, perto de minha casa, trafegando em velocidade adequada para a via, quase atropelei um grupo de três motociclistas da PM que, inadvertidamente, ingressou na preferencial por onde eu trafegava… com todas as luzes das motos apagadas. Tomei um susto. Nada fiz, posto que se houvesse reclamado, imaginem o que poderia me acontecer…
Vivenciei, no meu pouco tempo de PM, uma tentativa de se criar um chamado policiamento comunitário, com policiais mais próximos da comunidade. Já faz quase 20 anos e esse projeto, que eu saiba, nunca saiu do papel.
São pequenos detalhes. Mas é preciso que a educação nos quartéis seja revista e que o conceito de segurança pública tenha um olhar mais atento dos especialistas. Convivi com oficiais extremamente bem preparados, na PM de Brasília e tenho certeza de que eles também estão em outras polícias pelo Brasil.
São esses oficiais, os responsáveis pela mudança. E que ela seja para melhor.
Umberto de Campos, jornalista