VERBA VOLANT, SCRIPTA MANENT (Sandro Xavier)

Sandro Xavier/Divulgação

Essa máxima latina me fez pensar na atualidade de alguns provérbios tidos como verdade incontestável, e relacionei tudo isso com a atual e, por que não?, assustadora realidade da inteligência artificial. Junto com isso, pensei na inteligência natural (seria “natural” o antônimo de “artificial” nesse contexto?).

A famosa frase no título, traduzida para o nosso português, é mais conhecida como “as palavras voam, os escritos permanecem”. O princípio era que tudo que fosse escrito deveria ser feito com muita prudência, pois ficaria registrado para a posteridade. Já aquilo falado, sem registro, pode não ter poder de comprovação, de recordação, ou mesmo facilitar qualquer acusação ou cobrança.
Acontece que, hoje em dia, as palavras somente faladas já têm seu registro até mesmo sem que você perceba ou tenha solicitação de aprovação para isso. Não estou falando só de um discurso que possa ter sido feito em uma formatura de alunos, por exemplo, já que é um momento em que você pode ser filmado ou simplesmente ter sua voz gravada sem que lhe perguntem se isso poderia ser feito. Falo mesmo daquela hora de relaxar com amigos, seja numa mesa de bar, numa roda de conversa na escola ou em qualquer lugar em que se fala sobre vários assuntos. Ali, alguém pode, facilmente, com um simples telefone celular, gravar sua fala ou até mesmo filmar seus atos. Suas palavras já não vão somente voar, mas já estão registradas para todo o sempre.
A tecnologia está mudando nossa vida. Para muitas dessas realidades nós ainda nem estamos preparados totalmente. Talvez nunca o estaremos, pois, o avanço tecnológico é tão rápido que, quando estivermos prontos para compreender e conviver com uma técnica qualquer, já haverá outra para ser aprendida e utilizada. Isso, certamente, já está mexendo não somente com nossa vida prática, mas com a psicológica também. Mas isso é papo pra outra reflexão (e é igualmente importante. Talvez até mais!).
Note que outra afirmação tradicional que utilizávamos muito era “uma imagem vale mais do que mil palavras”. Ora, hoje precisamos pensar mais sobre essa frase. Afinal, ela vem de uma época em que uma foto tinha bem menos recursos para ser manipulada. Uma pessoa verificada em uma imagem era logo associada àquela realidade de maneira incontestável. Algo bom lhe dava crédito. Algo ruim lhe condenava, por certo.
Ocorre que, com o advento da inteligência artificial, uma imagem já não está valendo muita coisa. Não para provar que o momento que ela registra seja, de fato, verdadeiro. Uma imagem, agora, não é mais incontestável.
A inteligência artificial parece não ter limites para colocar uma pessoa em situação na qual ela nunca estivera. Ela pode, até mesmo, copiar a voz de alguém e fazer com que a pessoa cante uma música que nunca cantou ou proferir um discurso que nunca falou. Isso pode ser utilizado para diversão, para composição de uma foto de família com a presença de um parente querido que já morreu, mas pode ser planejado, de forma sórdida, para incriminar alguém ou simplesmente para colocar em maus lençóis uma pessoa de quem não se gosta. É fácil e, até que se consiga provar o contrário, a cultura do cancelamento já vai destruir muita coisa na vida daquele ser humano.
A inteligência artificial também está muito famosa por causa da sua capacidade de produzir textos solicitados pelos seus utilizadores, especialmente pela plataforma do ChatGPT, que tem esse nome porque apresenta capacidade de conversação (representado na palavra chat), associada à sigla GPT, que significa generative pre-trained transformer (algo como “transformador pré-treinado generativo”).
Hoje, alguém pode “produzir” (digamos assim) uma tese ou um artigo para qualquer gênero discursivo, seja ele jornalístico, em todas as suas variações, teológico, acadêmico etc. Basta que se pronuncie com os detalhes necessários o que você precisa do ChatGPT, e ele rápida e facilmente vai lhe oferecer um texto com todas as minúcias necessárias para atender aquelas demandas.
Acontece que a tal “inteligência artificial” é inteligente o suficiente para fazer um bom plágio de ideias. Ela tem as manhas para copiar o que já foi, competentemente, produzido pela inteligência natural. As pessoas que se esforçaram por pesquisar, testar, comparar e, até mesmo, errar, foram aquelas que, com maestria, abriram picadas no mundo do conhecimento bruto, arranhando seus corpos e levando ferroadas em meio ao matagal da mistura de saberes e de informações em matéria bruta, para que o caminho fosse trilhado com mais segurança por quem vinha atrás.
Eu acho totalmente ruim isso? Sinceramente, não o considero totalmente nocivo. O debate, agora, é sobre a honestidade e a atitude moral do ser humano em meio a isso tudo. Quando precisamos de informação sobre alguma situação, elemento, tema, cidade, pessoa, enfim, qualquer coisa, já lançamos mão, há muito tempo, de ferramentas como a busca de plataformas digitais e outras páginas especializadas em ajuntamento de saberes. O que é nocivo, a meu ver, é, quando se está num ambiente de produção pessoal, hoje em dia, não haver mais a segurança de que a própria pessoa condensou as informações que apresenta e de que ela mesma fez uma síntese daquilo tudo. Isso a gente espera de uma tese, uma dissertação, um trabalho de conclusão de curso (TCC), um artigo de jornal, um sermão, um livro e outras produções que trazem conceitos importantes. É bom deixar claro que devemos admitir que, em alguns ambientes e situações, pode haver a possibilidade de serem apresentados textos de outros autores ou autoras, desde que seja clara a citação da pessoa que produziu o pensamento ou trecho.
Os papos de coaches, hoje em dia, são eivados de repetições de frases prontas e, muitas delas, até milenares. São conhecimentos globais e perenes aos quais, em grande maioria, as pessoas não têm acesso. Quem tem a habilidade, como faz um ChatGPT, de buscar essas informações e mostrar às outras pessoas, como se isso fosse uma produção própria vinda de uma mente brilhante, acaba sendo objeto de admiração e respeito, bem como de consideração de boa capacidade de aconselhar.
Como os ChatGPT, são chamados “inteligentes”. De certa forma, não podemos negar que ter a capacidade de trapacear (buscar conhecimentos de outros e apresentar como seus) seja uma forma de inteligência, mas, assim como o programa artificial de conversa, as pessoas bem preparadas vão detectar de onde aquela informação saiu. Elas, geralmente, são conhecedoras das informações buscando por si, e não sendo passivas ao ouvir qualquer pessoa (ou ler).
Sim, escritos permanecem, mas, hoje em dia, as palavras ditas também ficam por aí. O problema é outro agora: quais são, de fato, verdadeiras? Quais são mesmo de autoria de quem assina? Quais foram produzidas para prejudicar e fazer o mal? Temos, então, outros problemas com os quais lidar.
 Sandro Xavier é Linguista e Teólogo

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