Segundo a narrativa do evangelista Mateus, o Senhor Jesus encontrou muita resistência por parte dos seus compatriotas em Nazaré, em relação ao seu ministério, não podendo realizar ali muitos milagres por causa da incredulidade deles. Em seguida ele introduz a descrição da morte de João Batista, o precursor de Cristo, o que levou o Mestre a retirar-se para um lugar deserto, onde, certamente, faria uma retrospecção de todos os acontecimentos até então e passaria também em revista os seus propósitos em relação à humanidade. No entanto, pouco tempo ele poderia desfrutar da sua própria companhia e da do Pai, pois as multidões o descobriram, e movido pela compaixão, que era sua marca particular, Jesus os abençoa com o milagre da multiplicação dos pães. Não se fixando em nenhum lugar por muito tempo, Jesus insta com os discípulos para que o precedam na travessia do mar da Galileia enquanto ele despede as multidões, agora saciadas.
Sou eu, não temais! (Luzelucia Ribeiro da Silva)
Mas, a necessidade de estar em comunhão permanente com o Pai, de maior intimidade com Ele e forças para a sua missão fizeram com que o Senhor subisse ao monte a fim de orar sozinho. E a tarde caiu encontrando-o prostrado em reverente oração, sozinho, longe do bulício da cidade, do burburinho da multidão e até mesmo da presença dos discípulos.
Pesava sobre os ombros de Cristo a responsabilidade pela salvação da humanidade. Ele havia deixado sua glória ao lado do Pai, havia se esvaziado dos seus atributos divinos para compartilhar com o homem da sua condição terrena, para que assim pudesse restaurar a comunhão perdida, quando nossos primeiros pais pecaram contra Deus, legando ao homem uma herança espiritual de morte, separação, dores e misérias.
Jesus sabia que a cruz o esperava no fim do caminho e até lá ele teria que vencer muitos obstáculos, entre eles o de ser aclamado como o rei dos judeus, que libertasse a nação do jugo romano; mas, na verdade o seu reino não seria visível, material e destrutível. Porém, a mentalidade da época não alcançava a grandiosidade da sua missão.
E lá estava Jesus orando sozinho, em meio às suas angústias, pois era “varão de dores e experimentado nos trabalhos (…) e sabe o que é padecer.” Enquanto isso, o barco com os discípulos ia longe, açoitado pelas ondas, porque o vento soprava contrário.
Percebemos que havia algo mais na mente de Cristo quando ele dispensou os discípulos. Pela própria localização do mar da Galileia, ele era sujeito a repentinas tempestades que atemorizavam os pescadores e marinheiros. Teriam que lutar desesperadamente pela sobrevivência, até que a turbulência se transformasse em calmaria. E os discípulos estavam lutando contra a fúria do vento. Eles se esforçaram durante toda a noite e agora é madrugada. Esse período trazia as horas mais sombrias de todas. Pode ser também considerado o momento de maior escuridão espiritual, provações, sofrimentos, indecisões, temores. E exatamente aí, “na quarta vigília da noite, foi Jesus ter com os discípulos, andando por sobre o mar.”
Por certo eles estavam perto da exaustão, desconsolados, sem atinarem com o motivo que fizera com que o Mestre ainda não lhes tivesse vindo socorrer. Os ânimos estavam arrefecidos. E salientamos que nessa madrugada escura, na quarta vigília, horas que antecedem o amanhecer, é que as lâmpadas enfraquecem, a escuridão pesa mais sobre as coisas e o espírito dos homens acordados está em maré vazante. É nessa hora que o inimigo sussurra: “Por que não desiste? Não vai conseguir. Não vai escapar. É demais para você. Por que não largar o remo e deixar o barco afundar? Por que não acabar com tudo”? Os discípulos enfrentavam, por certo, essas tentações… A esperança de salvação era remota. Ninguém para ajudar, para aliviar a tensão, para proporcionar segurança e apontar um porto seguro.
Desistir de tudo seria a solução?
Onde estaria o Mestre? Por que tanta demora?
Parece que nos vemos a nós mesmos, quando nas nossas tribulações e angústias pensamos remar sozinhos, lutando com o vento contrário, sentindo que vamos soçobrar. Toda ajuda parece distante, inalcançável, tardia… E o espírito angustiado percebe “um céu de bronze”, nuvens cada vez mais escuras e o temporal prestes a desabar. Indefesos, desesperados, quantos não desistem da luta, acatando a voz do maligno para mudarem o rumo de suas vidas, para escolherem um caminho que certamente será o mais fácil, mas que culminará em dores e morte. Quantos que não conseguem romper as horas escuras de sua “quarta vigília”, quando lá longe se delineia um vulto andando sobre as águas agitadas do seu revolto mar!
Por que Jesus demora tanto a chegar quando nos debatemos como náufragos em meio às intempéries da vida? Passamos a não enxergar direito, nossa visão se confunde e nos voltamos para nós próprios, para o nosso emaranhado de tristezas e desolações.
Assim também os discípulos, em meio a tanta angústia, vislumbraram uma figura andando sobre as águas e o pânico tomou conta de todos eles. Dizia a lenda que quando um fantasma se apresentava aos marinheiros e pescadores, isso significava que eles não tinham mais salvação, a única saída seria o naufrágio e consequentemente a morte. Portanto, sentindo-se impotentes, condenados, desamparados, eles gritaram. Nada mais restava. Aquele vulto era o espectro da morte. Mas, aqueles gritos ressoaram pela amplidão das trevas, em meio às ondas bravias e empoladas e ecoaram no âmago de Cristo que, aproximando-se falou-lhes: “Sou eu, não temais!”
O dia amanhecia. As trevas começavam a dissiparem-se e a aurora tingia o horizonte com as cores da esperança e da alegria. O socorro chegara. O alívio para todos os temores de uma noite terrível, quando a fé estivera a ponto de sucumbir. Ali estava Jesus. Por que temer? Por que temer quando ele está se aproximando de nós, ou quando está conosco? Ele sempre vem na nossa quarta vigília. Ele sempre atende o brado de um coração aflito, que sinceramente clama por ajuda e salvação. Jesus sempre chega no momento exato, quando mais necessitamos, quando nossas forças se esgotaram, quando todos os nossos recursos se tornam ineficazes e sentimos a nossa tremenda limitação como homens, seres mortais, que não podem acrescentar “um côvado ao curso da sua vida!”
Mas Jesus escuta o grito de um coração desconsolado, aflito e só. A sua compaixão e o seu afeto alcançam ainda todos quantos queiram abrir-lhe espaço no coração para que Ele faça morada. Porém, precisamos crer, sem duvidar. Vimos que Pedro, o mais impulsivo dos discípulos, imediatamente disse ao Senhor: “Se és tu, mande-me ir ter contigo, por sobre as águas. E Jesus disse: Vem! E Pedro, descendo do barco, andou por sobre as águas e foi ter com Jesus. Reparando, porém, na força do vento, teve medo; e, começando a submergir, gritou: Salva-me, Senhor!”
Pedro reparou na força do vento e teve medo. Mesmo ao lado de Jesus podemos enfrentar provas e tribulações. Se repararmos na força das circunstâncias, como Pedro, podemos submergir, mas se atentarmos para Aquele que é o Autor e Consumador da nossa fé, nada nos poderá deter. Nos momentos mais difíceis o Senhor estará conosco. Ele nunca nos prometeu uma caminhada sem dificuldades, mas prometeu estar conosco todos os dias, quando tivermos que passar pelas águas, pelos rios, pelo fogo. Sua presença nos é assegurada.
Jesus sempre vem, Ele não nos deixa esperando mais que o necessário. Não importa quando virá ao encontro das nossas necessidades; Ele não nos decepciona nem desampara nunca. Estejamos confiantes quando as horas escuras nos acometerem; descansemos nele para que sejamos levados em segurança ao porto da salvação, porque, ancorados nele, será fácil toda e qualquer travessia. Estando edificados na Rocha, a chuva pode cair, podem transbordar os rios, soprarem os ventos, nada será suficientemente forte para destruir a nossa segurança, nada poderá abalar a nossa fé. Na nossa quarta vigília teremos a presença dele para nos fortalecer os joelhos trôpegos e levantar as mãos caídas, numa voz inconfundível: “Sou eu, não temais!”
Luzelucia Ribeiro da Silva é professora, teóloga, escritora e membro da Academia Evangélica de Letras do DF.