Revisitando o Passado (Luzelucia Ribeiro da Silva)

Luzelucia Ribeiro da Silva/Divulgação

Há seis décadas desembarquei na Rodoviária do Plano Piloto em uma noite amena de abril. Tudo era novidade. As luzes da cidade, os carros, a arquitetura. Eu estava chegando, junto com a minha família, vindos de uma minúscula cidade do interior de Minas Gerais, a pequena e distante Ouro Verde de Minas, onde as pedras enormes que circundam a cidade eram o meu encanto e o cheiro do capim gordura ao longo das estradas de terra ainda hoje me deixam o coração saudoso. A vida viria a desabrochar para mim aqui, neste planalto central.
Brasília era ainda uma criança e eu não passava muito disso também. Assim, crescemos juntas. Era estranho ver aquelas primeiras construções em barracos de madeira. Foi difícil ter que morar em um deles, depois de deixar uma casa de alvenaria com amplos cômodos e um quintal maravilhoso que tinha lá no fundo um rio que cruzava a cidade e ali, vendo as águas descerem rio abaixo, apreciando as piruetas que as piabas davam na água, o tempo não tinha pressa de passar…
A primeira grande surpresa ao chegar aqui foi pensar que um carro havia caído em um buraco quando ele entrou no Buraco do Tatu! Mantive as mãos fechando a boca para não gritar! Parecia ter sido engolido por uma cratera, mas era apenas uma das singularidades dessa capital ainda menina que já começava me encantar.
A adaptação foi tranquila. Logo fomos encaminhados para uma igreja evangélica que nos acolheu com muito carinho. Senti-me especial naquele meio onde podia conviver com pessoas da minha idade e compartilhar momentos de muita alegria com o estudo da Palavra de Deus. Na escola, novas amizades, uma professora excelente e muitas descobertas no novo mundo que se descortinava diante de mim, pois a leitura era o meu maior passatempo.
Como era enriquecedor retirar livros na Biblioteca Ambulante, um ônibus que vinha de quinze em quinze dias à escola e podíamos levar alguns exemplares para devolvê-los na data marcada. Eu me deliciava com a leitura de várias obras interessantes e foi assim que conheci o mundo romântico de José de Alencar e Machado de Assis, sem contar coleções inteiras de autores estrangeiros e passear pelas páginas de Eça de Queiroz, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Érico Veríssimo, Rachel de Queiroz e outros grandes nomes da nossa literatura brasileira. E não é que, sob a inspiração desses autores participei até de um concurso literário promovido pelo MEC, mas não tinha ainda estrutura para tanto. Valeu, porém, todo incentivo que recebi do meu avô, querido vovô Martiniano que sempre estava conosco, que me servia de inspiração ao vê-lo sentado com a sua Bíblia nas mãos, lendo-a o tempo todo.
O tempo passou, talvez não tão rápido como hoje, pois, mal iniciamos um ano novo já as músicas de Natal começam a embalar nossos dias… Parece que há uma urgência em tudo que fazemos agora, porque o tempo está se esgotando. E o tempo esgota? Tempus fugitis, diria o saudoso e querido Rubem Alves. O tempo passou… A cidade tornou-se adolescente, moça, jovem senhora e adulta, alcançando a marca da maioridade, agora idosa… Vieram as consequências naturais da idade como um inchaço na sua expansão, a liberdade política que trouxe benefícios e também muitas tristezas, situações que não foram pensadas quando do planejamento de Brasília, alagamentos e violência… O tempo passou…
A caminhada até aqui foi cheia de surpresas e sou agradecida a Deus pelos caminhos que palmilhei, pelas vitórias que conquistei, pela contribuição que pude dar ao meu segmento religioso e por fim, apreciar ainda o céu mais azul que emoldura a capital que adotei para ser minha cidade, sem esquecer os ipês que na sua época de floração deixam Brasília colorida e cheia de graça.
Essa volta ao passado tem hiatos, reticências, supressões… Mas há uma gratidão imensa em meu coração porque um dia, meu velho pai, que ainda não era velho, decidiu transferir-se para Brasília com a família a fim de que os filhos pudessem estudar. Hoje não o tenho mais, porém, ele tem e terá sempre a minha gratidão, pois neste planalto central, onde o sol brilha com mais intensidade, encontrei meu lugar ao sol. O tempo passou rápido demais!
Finalizo com Rubem Alves em seu livro Tempus Fugit: “O relógio toca de novo. Mais um quarto de hora… Sentia que o relógio me chamava para o seu tempo, que era o tempo de todos aqueles fantasmas, o tempo da vida que passou. […] Meu relógio só me dizia uma coisa: o quanto eu devo correr, para não me atrasar. Mas o relógio não desiste. Continuará a nos chamar à sabedoria: Quem sabe que o tempo está fugindo descobre, subitamente, a beleza única do momento que nunca mais será…”

Luzelucia Ribeiro da Silva é professora, filósofa e teóloga.

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