No colégio, o primeiro dia de aula do ano começa animado, Quase todos falam ao mesmo tempo. O difícil é ouvir as orientações da coordenação: Devagar! Sem empurra-empurra, pessoal!
O professor inicia a aula informando que o tema da aula é livre. Uma aluna, frequentadora assídua da igreja, sugere: Existem personagens interessantes na Bíblia. O eunuco, Nicodemos, Tomé… Que tal…? Outra aluna interfere. Sem esconder o sarcasmo, pergunta: Professor, por que o Deus cristão, poderoso, abandonou seu filho na cruz? A pergunta da aluna deixa o professor visivelmente desconfortável. Ele esquece o café esfriando sobre a mesa e logo entra num resumo histórico de alguns personagens bíblicos:
— O eunuco, um etíope, alto funcionário da rainha de Candace, lê as Escrituras enquanto viaja, mas não entende o que está escrito. A carruagem segue apressada. Ler as Escrituras pode tornar a viagem menos enfadonha para o eunuco. Felipe, um dos primeiros cristãos, encontra o viajante. Faz seu cavalo galopar até alcançá-lo. Ele pergunta ao eunuco se está entendendo alguma coisa. A resposta é negativa. O eunuco responsabiliza quem conhece os textos das Escrituras, explicar o que está escrito. Felipe aceita o pedido e o ajuda a entender melhor alguns trechos sagrados.
Sob um luar que traz calmaria às ruas da cidade, passos altivos de um mestre de Israel procuram Jesus. Ele evita chamar a atenção; prefere não ser reconhecido. Nas poucas aglomerações das ruas, Nicodemos pergunta sobre Jesus. E pede segredo desse encontro. “Um mestre também tem perguntas a fazer. Não comprometam o meu prestígio.” Tem horas que Nicodemos não sabe segurar o que não é para dizer. Ele esconde o rosto e encontra o mestre nazareno numa esquina. Após cumprimentos, Jesus recomenda para Nicodemos o novo nascimento como garantia da vida eterna. O mestre Nicodemos faz uma pergunta pífia: tenho que entrar no ventre de minha mãe para nascer de novo? Jesus, com paciência, explica com mais detalhes.
Opa! Lá vem Tomé! Acreditem: ele parece um desses alunos muito calados em sala de aula. Introspectivo, exige do professor a prova de tudo o que ensina. Porém, gosta de induzir ao tropeço, provocando incertezas. Jesus sabe disso. Tomé! Não está me reconhecendo? Eu sou Jesus, disso tenho certeza! (risos) Toque aqui! Coloque a sua mão na minha mão. Imagine o tamanho do prego que me prendeu no madeiro.
Jesus desaparece. A notícia da ressurreição incomoda os religiosos e o poder religioso-político romano. A tensão toma conta dos discípulos. A divulgação da notícia de que o crucificado fora visto comendo peixe à beira do lago, foi tido como provocação. Os discípulos são duramente perseguidos. Muitos, decapitados, Outros, banidos para ilhas-prisões. A expansão da mensagem de boas novas de salvação é reprimida. Quem insistisse, receberia a mais cruel sentença condenatória. Assim, e apesar de tudo, os cristãos ao redor do mundo cresceram. Até hoje crescem exponencialmente. Cristãos intensamente crédulos, desajeitadamente trôpegos, pregam pelos caminhos a existência da vida eterna.
O professor encerra a exposição: Vamos terminar a aula de hoje? A aluna reclama:
— E a minha pergunta? Vai ficar sem resposta?
Um aluno se levanta, e sem perder a linha da exposição, faz uma dura crítica:
— A pergunta da minha colega é altamente relevante. Por que o professor pulou a parte que diz que o Deus cristão abandonou seu Filho na cruz? Que tipo de pai é esse? Ainda O chamam de Deus? Que Deus é esse que abandona seu próprio Filho na cruz.
O professor pergunta aos alunos se alguém quer ficar mais um pouco. Se alguém estiver interessado na resposta pode ficar.
— Pois bem… Para responder a essa questão, tomo emprestado dois termos da filosofia: imanência e transcendência. A fidelidade de Deus é própria da natureza divina (imanência). Os reflexos dessa natureza são os desdobramentos, que se prolongam externamente (transcendência). Esses dois princípios ajudam a entender a atitude de “abandono”, bem observada pela aluna.
Se o Pai, fiel em sua natureza, impedisse o Filho de morrer na cruz, Deus o salvaria, mas comprometeria o desdobramento da grande salvação. A salvação se reduziria no âmbito doméstico.
O Pai, que é amor, não negaria salvar seu Filho da morte na cruz. Porém, no plano externo (mundo), Pai e Filho se tornariam dois mentirosos. Dois infiéis ao pacto de salvação desde a fundação do mundo. Deus, o fiel e verdadeiro (Apocalipse), optou pelo afastamento, ou melhor: silenciou. A fidelidade ao pacto da salvação pela morte na cruz foi maior. O Pai não podia abandonar o pacto. Se Deus salvasse seu Filho da cruz, a salvação da raça humana seria o maior fracasso. O Pai afastou-se da cruz, manteve-se distante (em silêncio) preservando o cumprimento da obra de salvação, na morte do Filho.
— E o pedido de Jesus? — Insiste um aluno.
— O Filho perguntou ao Pai como um homem qualquer: Por que me desamparaste? Jesus não pediu a interrupção da sua morte ou mudança de planos. O plano de salvação não foi abortado.
Com a morte do Filho na cruz, a salvação se torna acessível por toda a espécie humana. Pai e Filho foram fiéis ao plano inicial, pactuado durante a criação do mundo..
Deus, o Pai, manteve-se em silêncio (ou ausente) para que a obra da cruz se cumprisse, a morte do cordeiro de Deus. O plano desde a fundação do mundo, o Pai foi fiel ao que prometeu, não mentiu, e, rigorosamente, tudo se cumpriu.
—A salvação cristã se espalhou em todo mundo. Mas tinha que ser assim? Sangue e morte? — Pergunta a aluna.
O professor recolhe seus objetos sobre a mesa. A aluna devolve um livro de história ao professor que aproveita para mais um comentário:
— Se a morte de Jesus e a ressurreição de Cristo não se cumprissem, todo o pacto da salvação tornaria Deus mentiroso e Lúcifer vitorioso.
— Gostei da resposta. Legal, professor! No entanto, a salvação conduzida pelos hebreus tem muito sangue. O Deus cristão é excessivamente sanguinário. Não quero me tornar cristã, muito menos converter ao judaísmo enquanto os soldados de Israel estiverem dando tiros em inocentes, mas prometo pensar no assunto.
Judson Santos é escritor, professor e Membro da AELDF – Academia Evangélica de Letras do DF – Cadeira 19