Havia no Direito Canônico Romano uma figura emblemática que é um promotor da fé, denominado oficialmente como Prelado Teólogo do Dicastério. Sua função era a de atuar nos processos de canonização dos santos, na defesa da fé católica, buscando argumentos ou fatos que pudessem contraindicar a pessoa postulada, por falha de caráter ou qualquer deturpação das provas apresentadas, como, por exemplo, falsos milagres que estivessem sendo atribuídos ao futuro venerável. Popularmente, esse promotor recebia o nome de advogado do diabo.
Este cargo, criado em 1587, acabou sendo abolido do Direito Canônico em 1983, pelo Papa João Paulo II, que alterou o processo de canonização, transferindo ao Pontífice a integral responsabilidade pela canonização dos novos santos. Extinguiu-se o cargo, mas permaneceu no imaginário popular a figura de alguém que tem a responsabilidade de analisar as situações ou indivíduos, por um ponto de vista diferente ao que é o senso comum.
Na minha vida profissional, e no ministério cristão, já tentei fazer o papel de advogado do diabo, mas confesso que, em algumas oportunidades, fui mal compreendido. No mundo corporativo, quem se dispõe a olhar a instituição pelo prisma de quem estaria fora da organização, tem por objetivo testar a consistência das práticas que vão sendo solidificadas, ou ainda, identificar possíveis fragilidades na estrutura organizacional.
A atitude mais demandada do “advogado do contra” é a dúvida. Levantar dúvidas é algo que incomoda profundamente as estruturas, ou as pessoas, já cônscias do seu papel ou posto. Na nossa cultura buscamos sempre o consenso, e quanto mais rápido ele vier, melhor. Queremos estruturas “sólidas e duradouras”. Esconjuramos a polarização. Na cultura dos judeus não é assim. Entre eles há um dito que exemplifica essa característica social: “dois judeus discutindo, há sete opiniões diferentes”. Eles cultuam debater arduamente qualquer questão ética, teológica, política, entre outras.
Na Bíblia encontramos demonstrações de como os povos antigos apreciavam o debate. Um exemplo é a passagem do apóstolo Paulo pelo Areópago, um tribunal formal, mas também espaço para a livre discussão entre os sábios gregos (Atos 17). Outra citação, ainda mais elucidativa, é o debate do menino Jesus com os doutores da lei, no Templo de Jerusalém. Diz o texto de Lucas 2, que ele estava “assentado no meio dos doutores, ouvindo-os e interrogando-os”. Um sábio menino de apenas doze anos, treinado para ouvir e interrogar.
Mas, a meu ver, o mais ilustrativo exemplo da prática de questionar, contra todas as evidências e certezas possíveis, era a prática dos irmãos da igreja em Bereia: “Os bereanos eram mais nobres do que os de Tessalônica, pois receberam a mensagem com grande interesse, examinando todos os dias as Escrituras, para ver se era verdade o que eles anunciavam. ” Atos 17.11 (NVI)
A igreja em Bereia teve uma oportunidade única de ouvir a mensagem do Evangelho diretamente de Paulo e Silas. Mas não se curvaram e exerceram o direito à dúvida.
“No entanto, os bereanos não aceitaram cegamente a mensagem trazida por Paulo e Silas. Eles tinham uma atitude distinta de mente aberta, mas também crítica. Ao ouvirem a pregação do evangelho, eles não apenas levaram em consideração o que lhes foi ensinado, mas também buscaram verificar a veracidade das palavras de Paulo e Silas.”*
Um dos meus aprendizados na vida, é que não há vencedores ou perdedores após um debate franco e respeitoso. O diálogo transforma os dois lados. Ninguém sai igual depois de uma discussão. Por mais solidificadas que sejam as partes, se estiverem dispostas a ouvir, acrescentarão ao seu universo de percepções, argumentos da parte contrária, que até então lhes tinham passado desapercebidos, ou até rejeitados abruptamente, sem maiores reflexões.
Precisamos desenvolver o hábito de avaliar as informações que nos chegam à luz do nosso discernimento, crenças e bom senso. Sejam opiniões doutrinárias, científicas, políticas ou de qualquer outra esfera de interesse, não podemos ter medo de sermos rotulados de crítico mordaz, “o do contra”, cético, negacionista e, muito menos, ser visto como um “um maria-vai-com-as-outras”.
Vivemos nos tempos das “fake-news” e da pós-verdade. A primeira é a nossa velha conhecida mentira. Apesar do nome estrangeirado, não tem nada de novo. Já a segunda é mais ardilosa. Segundo o dicionário da ABL, pós-verdade é uma informação “que distorce deliberadamente a verdade, ou algo real, caracterizada pelo forte apelo à emoção, e que, tomando como base crenças difundidas, em detrimento de fatos apurados, tende a ser aceita como verdadeira, influenciando a opinião pública e comportamentos sociais”.
Neste contexto de manipulação com forte ênfase na emoção, é difícil manter um prumo que garanta nossa higidez moral e espiritual. Até as universidades, criadas como esteio da ciência e da lógica, têm se mostrado, no presente, como centros de divulgação de crenças da ideologia “woke”, que substitui o rigor científico pela militância ideológica, que não admite o pensamento divergente. Elas contrariam o método científico de Descartes, calcado na dúvida. Por ele, a primeira atitude de um cientista é duvidar de tudo, em especial aquilo que já está estabelecido como uma verdade.
Ao concluir, eu me arriscaria a sugerir que todas as instituições, inclusive as comunidades de fé, deveriam estimular a criação de núcleos de reflexão crítica, para permitir o espaço adequado para o fluimento das ideias e confrontações que reavaliem as tradições e práticas secularmente estabelecidas. Talvez teríamos a surpresa de que alguns dos “advogados do diabo”, poderiam trazer algum renovo que aprimorem nossas certezas doutrinárias ou práticas litúrgicas, sempre sob a orientação do Espírito Santo, que é “… aquele que sonda os corações [e] sabe qual é a mente do Espírito, porque intercede pelos santos de acordo com a vontade de Deus”. Rm 8. 27 (NAA)
Elias Brito Junior é mestre em teologia.