A ilusão do desejo e a sua tirania no percurso civilizatório (Isaac Tavares e Sousa)

“Porque tudo o que há no mundo, a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida, não é do Pai, mas do mundo”. 1 Jo 2. 16 (ARC)
Isaac Tavares e Sousa

Jacques-Marie Lacan (1901-1981), o psiquiatra e psicanalista francês mais notável concilia com Sigmund Freud (1856-1939), o pai da psicanálise, ao afirmar que a vivência infantil é o sustentáculo da identidade do adulto. Lacan, na verdade, “matematizou” (os grafos) a Psicanálise, mas foi fielmente freudiano. As fantasias e a invectiva da consciência infantil se misturam, como um amálgama, para formar o sujeito humano através da linguagem. Para Lacan, não vivemos em um mundo de realidades, mas em um mundo de símbolos, de significantes (o significante é algo que representa outra coisa). Consonante com esta noção, o bebê que se encontra numa fase completamente desordenada, sem saber muito bem onde ficam as suas fronteiras físicas e emocionais, subtamente descobre uma imagem de si mesmo no espelho, como um ser completo, coerente e admirável. É assim que o bebê humano chega à ideia de si mesmo como uma identidade. Ele se imagina como este ser coeso que vê no espelho (fase do espelho). Isso significa que a noção do eu do bebê vem de fora, através de um mero reflexo de si mesmo. Esta falsa noção de eu, esta identidade enganosa, representa uma divisão que, para Lacan, permanece com o indivíduo por toda a vida. Nós desfrutamos ao máximo esta noção imaginária do eu que o espelho nos apresenta, que perdurará em toda a existência. É a mãe (ou substituta), evidentemente, que reflete para a criança esta ideia coerente de identidade, esta noção tranquilizadora do ser. Segundo Lacan, esta identidade é falsa e é um equívoco identificá-la como uma espécie de ego ideal (aquilo que a sociedade espera de mim). O verdadeiro eu é o eu inconsciente, concebido ainda na infância.

O foco em evidência é o seguinte: o sujeito neurótico (ou até mesmo psicótico) – extremamente neurótico ou não, uma vez que, de alguma forma todos temos neuroses, não é possível ser um humano sem neuroses – paga uma dívida que não contraiu, uma dívida contraída pelos outros, que o antecipa em sua história. Ademais, nomeamos essa dívida como “simbólica”. Lacan, afirma que somos loucos, não na condição clínica, mas no sentido de pagar uma dívida que não é minha; logo, loucura é pagar a dívida do Outro. Nesta condição, somos alienados ao Outro. Em outras palavras, somos alienados ao Outro em um processo histórico pela linguagem de uma forma simbólica. Com isso, temos a ilusão de uma saída para não repetirmos a dívida ao reduzi-la à fala. Porém, é a fala que nos faz repetir a dívida, sendo ela o instrumento central da linguagem, elaborada na constituição do inconsciente. O sujeito é, por sua vez, o efeito da linguagem; é o efeito da dívida que ele “reconhece” (acredita, alucinadamente que é um patrimônio seu). Se, por outro lado, essa preeminência de um Outro que ultrapassa a história pessoal do sujeito, se essa preeminência de um Outro radical e trans-histórico é verdadeira, é possível dar uma nova definição dos antigos conceitos psicanalíticos e dizer, de maneira lacaniana, que o inconsciente de Freud é o discurso do Outro. O inconsciente é o lugar que ocupo na dívida, na medida em que substituo um outro que a contraiu por mim. Por conseguinte, o desejo (que advém do inconsciente), que não me atrevo denominá-lo de meu desejo, é o desejo do Outro. Não tenho outra coisa a fazer, a não ser seguir as veredas do desejo que o Outro me preconizou. Essa natureza do desejo como desejo do Outro, na medida em que o inconsciente é o discurso do Outro (a começar pela mãe), na medida em que o sujeito humano é efeito da linguagem; isto é, efeito de uma dívida constitutiva que permanece perpetuamente na civilização. O desejo, em seus múltiplos leques de possibilidades, é, portanto, uma cadeia interminável de inúmeros “Outros”, na história da civilização humana, que nos aliena ao Outro e aos “Outros” em nossa dimensão histórica pessoal, que chegou até nós, em nosso micro estado gregário familiar, ainda na infância, evoluindo para o macro sistema sociocultural. Processo ocorrido na formação do inconsciente, através do recalque que, posteriormente, se fez em linguagem. Isto é, a semiótica em sua totalidade na evolução cultural do sujeito. Consequentemente, temos a ilusão que somos possuidores do desejo. Mas, qual o sentido de termos trazido aqui garatujas da psicanalise lacaniana? Em breve será esclarecido.
A Bíblia tem um princípio central, que é a negação e condenação de toda a idolatria. Os falsos deuses sempre foram condenados, desde os deuses egípcios, mesopotâmicos (tempo do Antigo Testamento) ou greco-romanos (no contexto do Novo Testamento). Israel pagou caro por servir a outros deuses; basta lembrarmo-nos dos cativeiros sob o império assírio (722 a.C.) e sob o império babilônico (597 e 587 a.C.). Séculos mais tarde, Paulo circulou pela cidade de Atenas, e testemunhou a idolatria de seus moradores (Atos 17). Portanto, a história antropológica sempre foi marcada pela necessidade idolátrica humana. As mitologias e religiões primitivas tinham formas mais exteriores de seus ídolos; ou seja, as imagens de barro, argila, madeira, cerâmica entre outros materiais, em uma diversidade de tamanhos e volumes eram veneradas. Os deuses externos eram mais evidentes em nossos ancestrais, que buscavam adorar ídolos visíveis e palpáveis em seus templos, com sacerdotes, sacerdotisas e sacrifícios, inclusive humanos. Em nossa história, moderna e pós-moderna os desuses externos foram reduzidos, em sua maioria, à ídolos internos; não que tenhamos abandonado os deuses mitificados nas religiões. Ainda necessitamos da visão de um ídolo exterior, seja animado (ídolos do mundo midiático artístico, como cantores, ídolos populistas do mundo político, ídolos dos diversos contextos religiosos, etc.) ou inanimado. O catolicismo romano, não eliminou seus “santos” manufaturados (imagens) em seus templos, assim como o hinduísmo com centenas de deuses ou mesmo as religiões africanas. Não obstante, temos novos deuses inseridos em nosso mundo interior, os quais podemos nomeá-los de ídolos. Nossos ancestrais eram mais vinculados à visão de ídolos externos na petição da realização de seus desejos. Isso é demonstrado na história das religiões, que se entrelaçam com a história das mitologias em todas as culturas. A própria Bíblia discorre em seu cânon sobre a dedicação e adoração dos povos inimigos de Israel, a deuses estranhos; à veneração a outros deuses, e não ao Deus de Israel. No entanto, apesar da continuidade dos ídolos externos em inúmeras religiões, os deuses contemporâneos evoluíram monumentalmente em nossa sociedade, como o dinheiro (em todas as suas modalidades), a ciência, a carreira profissional, o conhecimento, o domínio político personalista, a notoriedade, o sexo, os filhos entre outros. Incontestavelmente, esses “deuses” sempre estiveram presentes em toda a história da civilização, entretanto, eles se avultaram muito mais na presente era. Tais deuses, têm raízes no âmago do nosso constructo psíquico inconsciente, herdado dos “Outros” da história da civilização universal que, certamente, são desejos que se formataram em ídolos e se configuraram em deuses, disfarçados em autênticos desejos, tidos como pessoais. Desejos estes, que se tornam até mesmo tiranos, já que podem nos dominar, e guiar o nosso destino. As guerras, o terrorismo, a violência em toda a sua dimensão, a usurpação pelo domínio do semelhante, a discriminação em todas as instâncias, a corrupção, o engano, a falsidade, a arrogância e o desprezo podem ser o nosso Norte na bússola de nossas vidas. Porquanto, são desejos que se tornaram em ídolos, deuses a quem servimos. A servidão a um “deus” é uma maneira de sentir o prazer de ter o poder, um domínio, pois o ídolo, o qual eu sirvo me traz a sensação deste poder, gerado de um desejo, que supostamente creio ser meu. Mesmo não sendo um desejo não aniquilador, como uma dedicação à formação acadêmica para a carreira profissional, pode se converter no centro da minha vida, e se tornar um ídolo, como um deus estranho, como os deuses dos inimigos de Israel, registrados no Antigo Testamento, ou ainda, aos deuses de Atenas, vistos por Paulo. À vista disso, um talento (capacidade de cantar e encantar, de oratória, de verbalizar, de tocar instrumentos musicais, ou de uma capacidade artística), uma notável habilidade, uma grande capacidade cognitiva, uma beleza diferenciada podem se metamorfosear em ídolos em nós, e, por conseguinte, em deuses. Abraão recebeu uma promessa de Deus que teria um filho (Gn 17. 15-21) que se cumpriu muito tempo depois. A promessa se tornou realidade (Gn 21. 1-7), mesmo com a idade avançada de Abraão e Sara. Contudo, Isaac se tornou, por motivos intrínsecos (espera, idade e continuidade da história patriarcal familiar), um ídolo, no qual seria o seu sucessor e continuador da sua história. Sim, o desejo ardente por um filho, mesmo sendo uma promessa Divina, se transformou em uma condição puramente humana; logo, se desconectando do “filho da promessa” para ser um filho da continuidade na esfera terrena, de uma cadeia de desejos do Outro na cultura dos patriarcas. Sua fé no Deus único se fez dividida com o filho da promessa, ao ponto de Deus requisitar a entrega de Isaac em sacrifício (Gn 22. 2). Abraão obedeceu prontamente, em razão que Deus queria que o patriarca se livrasse do ídolo que Isaac se tornara. Abraão, no ato do sacrifício (Gn 22. 9-12), em obediência, se “livrou” do ídolo e permaneceu com o filho da promessa; era tudo o que Deus queria, para o cumprimento de Sua agenda de redenção na história humana. Mesmo havendo o entrecruzamento do desejo do Outro em sua história pessoal com a vontade Divina, houve a desistência da rebelião, representada no abandono ao ídolo. Toda forma de idolatria se esculpe em rebelião contra Deus. O primeiro mandamento diz: “Não terás outros deuses diante de mim” (Ex 20. 3 ARC). Isso implica que, não importa o tipo, a forma ou simbologia do ídolo (interno ou externo), sempre será uma manifestação de rebelião ao Criador. Isso não significa, obviamente, que os desejos são em si todos pecaminosos e idolátricos, evidentemente que não, mas, sim aqueles que se identificam com o sistema de rebelião contra Deus, que se formatam em ídolos, conforme “o deus deste século” (2 Co 4. 4 – ARC), o sistema mundano que flui de Satanás, “o príncipe deste mundo” (Jo 14. 30 – ARC). O desejo sexual é algo natural que concerne à condição humana, desde a sua origem, que foi maculado com o resultado da queda. Todavia, em uma união, conforme a orientação bíblica, não implica em pecado. Entretanto, quando se reverte em desejo imoderado e se faz conivente com o sistema de rebelião que há na civilização, transfigura-se em pecado. Outros desejos, advindos do corpo, pertencentes à cadeia do sistema biológico da natureza humana, como o sexual (libido, como investimento sexual), podem ou não resultar em ídolos; a glutonaria por exemplo, a compulsão sexual ou a diversidade das parafilias.
A civilização humana se estabeleceu e se desenvolveu sob o manto da queda e da rebelião no Éden. Mesmo redimidos Adão e Eva passaram a habitar em uma terra amaldiçoada (Gn 3. 17) e, além disso, uma posteridade humana com a herança da queda, do pecado da rebelião, incluindo eles próprios. No Éden, com a perda da eternidade corpórea, a finitude biológica foi decretada. Toda a raça humana agora iria se procriar, morrer e produzir civilização sob o domínio da rebelião contra Deus. Todavia, quem fomentou a desobediência em Eva e criou uma circunstância para a primeira rebelião humana ao Criador? Sabemos, pela Bíblia, que foi Satanás, que fora outrora, o querubim ungido (Ez 28. 14-16) no Reino Celestial. Sua rebelião contra Deus teve início no Céu que posteriormente, trouxe a sua rebelião ao Éden, após a criação do homem. Seu desejo de rebelião contra Deus e, ao mesmo tempo de ser semelhante a Deus (Is 14. 12-14), foi “implantado” em Eva e seguidamente em Adão, com o intermeio de Eva. Assim, o desejo dos pais da raça humana foi o desejo do Outro, do primeiro Outro, autor do desejo de rebelião ao Criador do Universo, pois queria ser adorado como Deus. Deste modo, Adão e Eva traduziram o desejo de Satanás em rebelião cotra Deus. Satanás foi o primeiro “Outro” na cadeia dos desejos, a partir do Éden em toda a história sapiens até aos dias atuais. Ele foi o primeiro tirano a criar o desejo da rebelião e da desobediência, pelo engano, na singular criação de Deus. Isso significa que, todas as sociedades humanas em todos os tempos e lugares herdaram este maléfico desejo de rebeldia contra Deus, que se manifesta em ídolos (deuses) que substituem o lugar de Deus; e tudo aquilo que O substitui se torna em um ídolo. As religiões e mitologias ocuparam o lugar de Deus na civilização, mas outras formas idolátricas também ocupam este lugar; com já dito, a civilização se desenvolveu sob a rebeldia ocorrida no Éden, a queda. Desta maneira, toda rebelião humana “rememora” Satanás para Deus. Logo, os ídolos, gerados a partir de desejos, que nem meus são – isso não isenta a minha responsabilidade, pelo fato de o desejo replicar na consciência –, se fundem com a rebelião de Lúcifer. A idolatria é um meio de se aproximar do Maligno, ele sempre quis ser venerado. Este é o motivo primordial da Bíblia rejeitar toda forma de idolatria. Paulo assinala na carta aos Romanos que “todos pecaram e destituídos estão da Glória de Deus” (Rm 3. 23 – ARC). O apóstolo aqui nos informa que toda a raça humana, desde Adão, se encontra em estado de rebelião e condenação. O salmista Davi, no livro de Salmos, escreve que “Eis que em iniquidade fui formado, e em pecado me concebeu minha mãe” (Sl 51. 5 – ARC). Davi, de alguma maneira, está denunciando que todos os humanos já nascem sob o desígnio da queda no Éden – além disso, teólogos acreditam que Davi estava expondo a sua condição de filho bastardo, na cultura patriarcal hebraica. Ambas citações nos informam que todo ser humano tem em si o germe da rebelião herdada de Adão e Eva. Rebelião pelo fato da desobediência à ordenança de Deus, da proibição de comer do fruto da árvore que estava no meio do Jardim. A serpente lançou dúvidas no casal (Gn 3. 1-3), além de dizer que se comessem do fruto seriam como Deus, que passariam a conhecer o bem e o mal. A serpente pronuncia: “e sereis como Deus” (Gn 3. 5 – ARC). Este era o desejo de Satanás, ser como Deus, que agora transferia o tirano desejo a Adão e Eva. Como já foram criados adultos, não havia um inconsciente em formação como receptáculo da linguagem, mas sim, uma plena consciência de seus atos; contudo, houve integral aceitação da proposta da serpente. Igualmente, herdaram a gene do desejo satânico, mesmo redimidos em seguida por Deus. Uma herança maldita adquirida e passada a todas as gerações. Deste modo, o casal seduzido pela ideia de poder, se tornou o segundo Outro na linha da temporalidade antropológica.
O que se passou no Éden, no episódio da queda e que tem ocorrido continuamente na civilização, o apóstolo João sintetizou em sua primeira carta: “Porque tudo o que há no mundo, a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida, não é do Pai, mas do mundo” (1 Jo 2. 16 – ARC). A tradução Alfalit Brasil, diz: “cobiça da carne” e “cobiça dos olhos” e permanece com o vocábulo “soberba da vida”. Já a versão na Linguagem de Hoje (Sociedade Bíblica do Brasil) registra: “Os maus desejos [concupiscência, cobiça] da natureza humana, a vontade [concupiscência, cobiça] de ter o que agrada os olhos e o orgulho pelas coisas da vida, tudo isso não vem do Pai, mas do mundo”. Ora, o que há no mundo (o secularismo) é uma civilização decaída da Graça de Deus, em estado de pecado e, destarte, de condenação, com a marca satânica da rebelião. O vocábulo “mundo”, do grego kosmos se alude, neste versículo, ao sistema secular da civilização, cujo alicerce se ergueu sob o espírito de rebelião de Lúcifer, que é contrário à toda revelação salvífica de Deus ao homem e à própria soberania de Deus no universo material e espiritual. Adão e Eva enveredaram pela proposta da serpente, exerceram a concupiscência (cobiça, desejo) da carne. Todo o sistema de identidade corpórea e mental de ambos se precipitou, se lançou naquele momento único de uma conquista inigualável, conhecer o bem e o mal e ser semelhante a Deus; imaginaram, certamente, que tomariam posse do mundo do Éden – mesmo tendo eles o desfrute –, de todo o seu resplendor, da flora e da fauna exuberantes, que seriam senhores como Deus dos “bens mareias” do Éden. A concupiscência (cobiça, desejo) dos olhos, da percepção visual ao ver a árvore e o fruto, encantaram Eva. “E vendo a mulher que aquela árvore era boa para se comer, e agradável aos olhos…” (Gn 3. 6 ARC), e, após comer deu a Adão que também comeu. A soberba (orgulho) da vida, se apoderou de ambos, no ato da desobediência ao Criador, pelo fato da possibilidade do conhecimento do bem e do mal, bem como, serem semelhantes ao próprio Criador. Os três pontos fundamentam a rebelião do homem contra Deus, na síntese de João, são, portanto: (1) desejo da carne, (2) desejo dos olhos e (3) a soberba da vida. O desejo da carne, se estende para além do desejo incontido de conquistas materiais, se estende para a pluralidade da sensualidade; o desejo dos olhos, de se encantar imoderadamente com a própria produção estética civilizatória (desde o belo da arquitetura, dos veículos, dos útiles pessoais, da moda em toda a sua dimensão, até aos útiles domésticos, etc.); a soberba da vida, o orgulho do homem pela produção e evolução da civilização em toda a sua dimensão cultural, artística (artes, música, literatura, etc.), científica e técnica. E, de igual modo, o homem, traz em si, além do orgulho em produzir a civilização, a soberba de desejar ser um semideus, diluído isso nos abissais de seu inconsciente, visto que, possui a herança maldita da queda, oriunda do primeiro Outro. Por esta razão, a natureza do homem caído, busca constantemente ídolos, inclusive, para além de ídolos interiores, mas ídolos externos para se projetar neste, como se fosse ele mesmo. É bem possível que, o Transtorno Narcísico, na nosologia psiquiátrica, seja a forma mais pura da soberba humana.
Nesta abordagem, alguém poderia arguir: e quanto ao livre-arbítrio? O livre-arbítrio entra em cena a partir do momento que me vejo em uma possibilidade de escolha. Ou renuncio o desejo (que se converte em rebelião) do Outro (e do primeiro Outro) que está prescrito em mim em negar o Cristo da Verdade e sigo meu caminho “destituído da Gloria de Deus” ou reconheço meu miserável estado de rebelião ao Criador, me flexionando à salvação em Jesus Cristo. Não importa se o desejo idolátrico tenha advindo de cadeias intermináveis, desde o princípio adâmico, até chegar em mim, dado que eu sou o seu portador; ainda ecoa em mim a decisão fatídica de Adão e Eva. Sou ainda o legítimo representante do primeiro humano em estado de queda e, portanto, rebelião. A marca mais desprezível à condição humana é o desejo de negação à soberania Divina. A inscrição da rebelião no Éden tem a sua culminância no Renascimento (séculos XIV- XVI). A citação “o homem como medida de todas as coisas”, de Protágoras, Antiga Grécia (490 a.C. – 415 a.C.) foi reestabelecida no Renascimento (um período inigualável da criatividade humana); ou seja, o significado da ideia era: “não necessitamos do Criador, veneraremos a nós mesmos, inclusive a cultura, a técnica, a ciência, as artes e a religião, e o próprio ateísmo serão os nossos deuses”. Paulo diz em sua epístola aos Romanos que os homens “honraram e serviram mais a criatura que o Criador” (Rm 1. 25 – ARC). Fato ocorrido em todos os séculos da história antropológica. “O homem como medida de todas as coisas” possui a autêntica assinatura do desejo usurpador de Lúcifer.
O Renascimento lançou luzes do potencial humano nos séculos que haveriam de vir, e, portanto, de seu orgulho civilizatório longe do Criador. O esplendor triunfalista renascentista, exacerbou o orgulho do homem, a “soberba da vida” ocultando mais ainda, pelo antropocentrismo, a ilusão de possuir um desejo que nunca lhe pertenceu que, de veras, fora um breve reflexo no espelho. O memorável Jacques-Marie Lacan, mesmo demasiadamente distante de perceber, denunciou o âmago histórico da natureza humana, ao expor a herança de um desejo que sempre pertenceu ao Outro e aos Outros na cadeia de desejos, e, no caso aqui tratado, nos fez recuar a um tempo passado indeterminado, a um tempo em que se originou a rebelião ao Criador, a partir do maléfico primeiro Outro. Posto isto, o homem somente poderá se libertar do fardo de sua alienação à rebeldia adâmica, através do novo nascimento em Jesus Cristo, pelo seu sacrifício vicário e ressurreição, o “último Adão” no proferir paulino.
Isaac Tavares e Sousa é Doutor em Psicologia, Psicanalista Clínico e Didata, Mestre em Educação, Psicopedagogo e Especialista em Educação Especial.

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