Precisamos aprender a viver em guerra (Paulo José Corrêa)

Paulo José Corrêa/Divulgação

Eu não tinha como prever a confusão que a minha sugestão provocaria. Só queria animar um pouco as aulas daquela disciplina no Instituto Bíblico. O professor era uma ótima pessoa, mas suas aulas eram cansativas e sem profundidade. E logo de uma matéria fundamental para a formação teológica: Cristologia.

Na aula em que o tema era a relação entre as naturezas divina e humana de Jesus, a abordagem do assunto nada acrescentava, e a apatia tomava conta da turma. Então, para romper o marasmo, tomei a iniciativa de apresentar uma tese que tinha lido num artigo da revista Mensagem da Cruz. Segundo o texto, Jesus tinha as duas naturezas, todavia em sua vida terrena nunca agiu como Deus, mas sempre e apenas como um ser humano. Tudo o que ele fez, mesmo os grandes milagres, foi como um homem; um homem agindo no poder do Espírito Santo. Foi por isso, argumentava o autor, que ele disse aos discípulos que eles fariam milagres ainda maiores. Para mim, essa era a melhor explicação para o assunto.

Expus essa ideia e pedi a opinião do professor. Ele ficou meio sem saber o que dizer, mas um dos alunos achou a tese uma grande heresia. Como se podia dizer que Jesus nunca agiu como Deus se ele era Deus? A turma se dividiu: alguns concordaram com o autor do texto; outros apoiaram o colega que discordou. Ante a divergência, sugeri ao professor que o assunto fosse estudado pela classe e, na aula seguinte, os dois grupos apresentariam seu ponto de vista para que o professor desse a palavra final sobre o tema.

A sugestão foi aceita. Mas antes da aula seguinte, a controvérsia extrapolou os limites da classe. Tomou os corredores e o pátio da escola e envolveu alunos das outras turmas. E à medida que o debate se espalhava, os ânimos se inflamavam. A partir de certo momento, a questão cristológica começou a ficar em segundo plano, e as divergências se voltaram para outras questões.

Vendo que a pendenga se alastrava e estava causando tumulto, o diretor interveio para que os alunos parassem com a discussão. Mas, não foi atendido por todos. Um dos alunos, inflamado na defesa de sua opinião, enfrentou o diretor com tanta hostilidade que pareceu disposto a agredi-lo fisicamente. Para acalmá-lo o diretor disse: “Está bem, irmão. Você está certo; eu estou errado.” Foi o jeito de abrandar a agressividade do aluno.

A situação me incomodou. Ainda mais por eu ter sido o provocador da contenda, embora sem ter esse intuito. Mas o incidente levantou uma questão: por que somos tão belicosos? Mesmo ali, num ambiente de estudo da Bíblia, onde deveria reinar a harmonia e as divergências serem tratadas com calma e racionalidade, uma questão teológica gerou um alvoroço litigioso. Tempos depois, presenciei idênticos confrontos em reuniões de pastores.

Isso não é novidade na história do cristianismo. O Novo Testamento registra diversos enfrentamentos dentro da igreja. Um dos primeiros, por causa da distribuição de alimentos entre os membros da comunidade cristã. Em outra ocasião, dois líderes da igreja, Paulo e Barnabé, divergiram sobre a companhia de um discípulo, e a discórdia foi tanta que os separou. Na carta aos gálatas, o apóstolo Paulo diz que teve um sério conflito com o apóstolo Pedro. Em outra carta, o mesmo Paulo condena as rixas entre os cristãos por causa dos líderes que cada um queria seguir. Em sua terceira carta, o apóstolo João reclama do líder de uma igreja que, além de recusar-se a recebê-lo, dizia coisas horríveis e mentirosas sobre o apóstolo. E a história da igreja após o primeiro século não é diferente: são inúmeras as guerras internas, com divisões, perseguições e até mortes.

Claro que essa disposição contenciosa não é exclusividade da religião. Mas, se isso ocorre entre o povo que prega o amor, a paz, a tolerância, o que esperar dos que não tem compromisso com a mensagem cristã? E os cristãos podem exigir da sociedade a prática desses valores se frequentemente os desprezam? Como dizer que somos seguidores do Príncipe da Paz, se não conseguimos divergir com respeito, calma e fidelidade à verdade, qualquer que seja o assunto?

A verdade é que somos beligerantes por natureza. Seja por consequência do pecado original, seja por causa de nossa origem selvagem, a história humana é uma história de conflitos. Na política, na família, nas comunidades religiosas, no trânsito ou nos jogos de futebol brigamos até por pouca coisa. E, pelo que se vê, nenhum projeto político ou religioso conseguirá mudar isso. A mansidão é moeda raríssima na Terra. E a paz perpétua, sonhada pelo filósofo Emanuel Kant, é uma impossibilidade. Parece que, para sabermos viver em paz, precisamos aprender a viver em guerra.

Paulo José Corrêa é mestre em Direito, pós-graduado em Letras e autor do livro “Três Bilhetes e um Segredo”

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