O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, em entrevista ao Globo, diagnosticou com precisão a nova natureza do poder no Brasil ao reconhecer que a transição-sucessão do governo Bolsonaro para o governo Lula, em dezembro de 2022, dependeu, fundamentalmente, do parlamento sob maioria de direita.
Havia uma confusão geral com a derrocada bolsonarista fascista, menos preocupada em cumprir suas obrigações constitucionais do que preparar o golpe de estado no dia 8 de janeiro de 2023.
Aquela transição era pouco considerada pelos fascistas, dado que o bolsonarismo, sintonizado no golpe que preparava, esperava continuar no poder, derrubando o presidente eleito.
O parlamento entrou no vácuo do poder deixado pelo bolsonarismo, como responsável por fazer a transição, e aproveitou a oportunidade para fincar novas regras de governabilidade que se firmaram ao longo de 2023, com maior ação parlamentarista.
Tal oportunidade se fortaleceu, do ponto de vista do parlamento, porque o presidencialismo tinha diante de si, com o golpismo explícito preparado pelo bolsonarismo moribundo, fator decisivo que o fragilizou.
Lula pegou o poder negociando não com o presidencialismo bolsonarista derrotado nas urnas, mas com a incógnita do parlamentarismo nascente, graças à maioria esmagadora da representação de direita frente à aliança que garantiu a vitória lulista.
O PT e aliados venceram para governar sob presidencialismo, mas foram, amplamente, derrotados pelo parlamentarismo ascendente sob comando da reação legislativa obediente não ao presidente, mas ao poder financeiro de fato encarnado no Banco Central Independente (BCI), subordinado à financeirização ditada pela Faria Lima.
O mercado, por sua vez, confrontava o programa do presidencialismo, sob Lula, cuja diretriz econômica desenvolvimentista, para tocar o PAC, era dada pelo parlamentarismo sob orientação neoliberal, evidenciando contradição radical.
HADDAD ATUA NO VÁCUO DO IMPASSE
Foi nesse impasse que o ministro Fernando Haddad foi obrigado a exercitar seu jogo de cintura.
Teve que abrir mão do estruturalismo lulista, irreal no contexto pós-eleitoral, impossível de vingar sob política monetária restritiva neoliberal.
Lula necessitava de flexibilidade monetária e fiscal – maior oferta de dinheiro em circulação que baixa juro e diminui tamanho da dívida pública, sonho keynesiano petista.
Além do mais, necessitava de política fiscal mais frouxa capaz de possibilitar ampliação dos gastos públicos, o que não aconteceu, para frustração geral da esquerda minoritária no parlamento, dominado pela direita associada ao mercado financeiro.
A contradição intrínseca à governabilidade parlamentarista neoliberal, no entanto, permitiu a Haddad aproveitar as oportunidades para construir seu espaço político.
A direita parlamentar, embora monitorada pelo mercado financeiro, teve diante de si necessidade de extrair dinheiro do Executivo para cumprir com a nova governabilidade imposta por ela, de viés parlamentarista.
Onde arranjar dinheiro para as emendas parlamentares, de modo a favorecer o populismo parlamentar junto às suas bases eleitorais?
O arrocho fiscal e monetário imposto pelo BCI, em combinação com a Faria Lima, teve que ser flexibilizado em forma de arcabouço fiscal que eliminou o teto neoliberal de gasto, quando da elaboração da PEC de Transição.
Haddad e Lula disporiam, com a PEC da Transição, de R$ 145 bilhões para tocar programa social que permitiria crescimento do PIB, valorização do salário-mínimo, alavancagem do Minha Casa Minha Vida, Farmácias Populares, isenção de IR para até próximo de dois salários mínimos, renegociação de dívidas, volta ao consumo, redução da inflação e expansão das exportações do agronegócio, puxador do crescimento em meio à industrialização congelada.
Ficou comprovada a certeza lulista: mais dinheiro em circulação reduz ao contrário de aumentar a inflação, como dizem os neoliberais, que ficaram desmoralizados em suas previsões fictícias, puro chute.
O aumento keynesiano dos gastos públicos na casa dos 8% do PIB, abrindo brechas no arcabouço fiscal, forçou queda da Selic, não na proporção necessária à demanda do PAC lulista, mas bombou Haddad como principal ministro de Lula.
JOGO POLÍTICO DA ECONOMIA
Nesse ínterim, o titular da Fazenda exercitou sua arte política de negociação.
Sob presidencialismo de pé quebrado lulista, negociou flexibilização do parlamentarismo neoliberal de modo a arrumar dinheiro para a maioria legislativa, cuja função deixaria de existir, se não conseguisse verbas no Executivo para atender seus novos interesses no contexto do novo poder semipresidencialista.
Os ministros de Lula, sem poder algum, tiveram que assistir as artes da negociação flexionadas por Haddad, o que proporcionou sua preponderância política, ao longo de 2023.
O ministro acertava o jogo com o Centrão, comandado pelo presidente da Câmara, deputado Arthur Lira(PPS-AL), e obtinha o OK de Lula, a contragosto, sob pressão do PT, destituído de poder.
A fragilidade proporcional do partido se acentuou, essencialmente, graças a sua renúncia à sua principal característica histórica partidária, a de ser agente da mobilização social, para exercitar poder mediante soberania popular.
A dobradinha Lula-Haddad foi maior que a aliança política de esquerda vencedora da eleição, quanto mais se evidenciou renúncia do poder do executivo minoritário no parlamento, no novo contexto da governabilidade, dominada pelo parlamentarismo neoliberal.
Dessa forma, cresceu as articulações sobre o futuro de Haddad, depois de Lula deixar o governo, possivelmente, em 2030, se se disputar, novamente, em 2026, com chances de vitória, salvo acidentes de percurso.
Antes de alcançar esse novo horizonte, terá que cobrir buraco orçamentário de R$ 132 bilhões, ou cortando gastos, tarefa impossível em ano eleitoral, ou aumentando arrecadação, impossível, também, sem elevação dos gastos públicos que geram renda disponível para o consumo.
Déficit zero que prometeu é miragem neoliberal improvável de acontecer.
EQUILIBRIO DE HADDAD SOB PARLAMENTARISMO
Em 2024, portanto, o titular da Fazenda, será obrigado a materializar em si a ambiguidade de ser petista presidencialista, mas também de ser parlamentarista junto ao Centrão para construir as alianças capazes de torná-lo candidato à sucessão lulista.
Não poderá depender, apenas, do PT, que, sob parlamentarismo neoliberal majoritário, não manda nada, só faz figuração na Esplanada, como aconteceu no ano passado.
Sobretudo, precisará consolidar relações com o parlamentarismo, para continuar atendendo interesses do Legislativo, majoritário, de viés direitista.
A dobradinha Lula-Haddad terá chance de rachar o poder da direita, isolando, principalmente, o bolsonarismo fascista, quanto mais concessão realiza para acomodar a maioria congressista?
O risco que a dobradinha corre é a de ficar exposta permanentemente como alvo das escaramuças que já preparam para ela, como a de recusar MPs que tentam contrariar a burguesia comercial, industrial e, sobretudo, financeira, com supressão de isenção de impostos.
Da mesma forma, correm perigo com decisão possível de negar reeleição contra a qual Lula não tem força parlamentar alguma para reagir, salvo abrir-se às concessões cada vez mais intensas.
Nessa negociação política, Lula e Haddad viram irmãos xifópagos no jogo parlamentar com o Centrão, objetivando abrir picadas a fim de conseguir recursos para o PAC lulista.
Para tanto, obrigam-se, ao longo de 2024, a cumprir a agenda parlamentarista capaz de garantir a base parlamentar que teoricamente viraria aliada confiável no apoio à candidatura Lula em 2026 e à de Haddad, em 2030.
Uma cogitação improvável, exceto se a economia, em meio às pressões do parlamentarismo neoliberal, alcançar sucesso popular indiscutível.
Repórter Brasília/ Por César Fonseca