“Não ponha palavras na minha boca!”, dizem os políticos quando querem negar uma declaração. Temos a pretensão de que falamos o que queremos e não o que os outros nos dizem para falar; achamos que ninguém interfere no que dizemos. Mas será mesmo assim?
Nas religiões mediúnicas — espiritismo e afro-brasileiras —, acredita-se que as pessoas podem ser porta-vozes dos espíritos. Para o cristianismo, Deus ou um demônio podem se manifestar por meio da voz humana. Há situações em que uma pessoa, em razão de uma profissão ou encargo, fala oficialmente por outra. É o que acontece com o porta-voz de um governo ou com um advogado ao falar pelo cliente.
Porém, mesmo fora desses casos, em certa medida todos nós reproduzimos o que outros dizem e pensam. Aprendemos a falar ouvindo e assimilando o que outras pessoas falam. A língua que utilizamos, o nosso vocabulário e os temas que abordamos são os do ambiente social em que vivemos. Esses elementos são introjetados em nossa personalidade e determinam o conteúdo e a forma da nossa linguagem.
Pensamos e falamos com as palavras e ideias de outras pessoas mesmo que não tenhamos consciência disso. Quando falamos de política, nossa palavra transmite a voz da ideologia que professamos. Os membros de uma religião reproduzem os dizeres da doutrina e da comunidade religiosa de que participam. O nosso vocabulário e os assuntos sobre o que conversamos refletem a linguagem do grupo social a que pertencemos.
A decisão judicial é um bom exemplo de que todo falar é uma reprodução da fala alheia. Ao proferir uma sentença, além de repercutir os argumentos que as partes apresentaram no processo, o juiz busca na ciência do direito, na lei e nas decisões dos tribunais os fundamentos jurídicos. O discurso do juiz não é (só) o seu discurso: é a palavra do doutrinador, do legislador e de todo o sistema jurídico no qual está inserido.
O pregador religioso também segue esse padrão. Além dos textos bíblicos, ele reverbera a doutrina de sua denominação, o que leu e estudou sobre o assunto de que fala, o que aprendeu no curso de teologia, a visão hermenêutica que lhe foi ensinada. E quanto mais erudito for, mais sua linguagem será permeada pela de outros.
A nossa voz é o eco de muitas outras. Por meio de nós muitas vozes se fazem ouvir: da nossa família, da nossa profissão, da nossa religião, dos nossos mentores políticos etc. Isso deságua em três aspectos práticos que precisamos considerar. A primeira é que, às vezes, essas vozes entram em conflito, e temos que fazer a conciliação ou a nossa fala soará incoerente. Ao dizer “Seja o vosso falar sim, sim; não, não”, Jesus estava cobrando coerência na linguagem dos líderes religiosos de sua época.
Outro perigo é meramente repetir o que outros dizem; “papagaiar” o que o pastor, o professor ou o líder político falam. Isso ocorre quando assimilamos essas mensagens sem uma postura crítica. A Bíblia chama de nobres os judeus da cidade de Bereia porque eles tinham a mente aberta para ouvir a mensagem cristã e uma atitude crítica para submeter a mensagem a um cuidadoso exame.
Um terceiro problema é a possibilidade de sermos manipulados, de fazerem de nós porta-vozes inocentes de mensagens que interessam a outros. Quando estava sendo julgado, Jesus perguntou a Pilatos: “Tu dizes isso por ti mesmo ou outros te disseram isso de mim?” Pilatos dizia o que pensava por si próprio ou estava sendo manipulado para repetir o que os líderes religiosos judaicos falavam sobre Jesus?
Ninguém é original quando fala. A originalidade está em como processamos o que recebemos dos outros. Muita gente põe palavras em nossa boca, mas como as usaremos depende de nós.
Paulo José Corrêa é mestre em Direito e pós-graduado em Letras
Muito pertinente essa temática, por exigir muitos cuidados, como bem assinala o nobre Paulo. Quando falamos sobre alguém, em especial, conhecemos mais o enunciador do que o objeto da enunciação. A linguagem pode muito mais do que pensamos, por seus elementos epilinguisticos. Atentemos!
Obrigado pelo comentário, Josué!
Paulo, boa noite! Estimo que possa estar bem.
Meu nobre, muito obrigado pela oportunidade de ler mais um texto excepcional da sua lavra.
Lembrei de dois conceitos nessa leitura: primeiro, recordei certa leitura, há muito tempo, sobre os Judeus de Bereia. Eles, realmente eram nobres, pois tinham aquele senso crítico que falta a muita gente hoje em dia, em todas as áreas da atividade humana. Segundo, há um primor ao fecho do seu texto, quando diz “A originalidade está em como processamos o que recebemos dos outros. Muita gente põe palavras em nossa boca, mas como as usaremos depende de nós.”. Este é o conceito mágico da Educação que tanto o nosso país faz questão de negar. Quando tyivermos nas nossas escolas básicas a preocupação, não de impor ideologias, mas de ensinar a criança a interpretar, criticar e debater seu entendimento pelas vias da liberdade, teremos alcançado um estágio nobre em nossa seara educacional. Parabéns, Paulo! Além de tudo, você continua demonstrando a clarividência do seu pensamento e o seu maravilhoso dom de escrever. Abraço, primo!
Obrigado pelo comentário, Ery! Vindo de pessoa esclarecida como você, o comentário me lisonjeia muito.