Em 1988, o então deputado federal Alceni Guerra propôs e defendeu a inclusão da licença-paternidade na Constituição Federal. À época, a resistência era grande. Dias antes da votação, o presidente da Assembleia Nacional Constituinte, Ulysses Guimarães, comunicara a Alceni a probabilidade de que a licença-paternidade não seria aprovada. O momento era particularmente simbólico. Alceni havia se tornado pai havia poucos dias, quando eu nascera.
Minha mãe havia tido complicações no parto devido a anestesia e não sentia suas pernas. Meu pai, Alceni Guerra, se dividia entre a intensidade histórica desse período de seu trabalho e uma casa com uma esposa se recuperando de uma grave internação – e de uma depressão pós-parto, uma recém-nascida e outros três filhos, todos com menos de oito anos de idade.
No dia anterior à votação, uma noite agitada da filha caçula o fez permanecer em vigília. Durante aquelas horas, sob privação de sono, formulou a estratégia para seu discurso em defesa da licença-paternidade – aos moldes da frase atribuída a Victor Hugo, “nada é mais forte do que uma ideia cujo tempo chegou”: faria uma fala colérica, à altura de sua indignação. No dia seguinte, acordou atrasado e se dirigiu às pressas ao Congresso Nacional.
Já na Câmara, sua subida à tribuna foi anunciada pelo deputado Ulysses como “o homem gestante”, arrancando uma gargalhada generalizada por parte dos presentes. Em meio aos risos e ao alto volume de conversas, decide fazer uma outra coisa com sua fúria e inconformismo.
Em vez de um discurso raivoso como deputado, opta por fazer uma aposta. Fala então como pai e pediatra e dá um testemunho comovente da sua própria história e das histórias de famílias que acompanhara enquanto médico. O plenário – até então ruidoso – se silencia, comovido. A licença-paternidade é aprovada em nossa Constituição Federal. Ulysses Guimarães lhe faz um pedido público de desculpas. Trinta e seis anos depois, essa conquista, ainda que histórica, é incompleta.
A Constituição garantiu o direito, mas o Congresso jamais o regulamentou plenamente. O prazo legal, estabelecido no final de 2023, venceu em 8 de julho deste ano. Seguimos com uma licença-paternidade mínima, cinco dias corridos, menos de uma semana para os cuidados de um ser absolutamente dependente fisicamente, para o apoio de uma mãe em puerpério e para a formação de vínculos.
Recentemente, a Câmara dos Deputados aprovou um requerimento de urgência para votar o PL 3.935/2008, que amplia a licença para apenas 15 dias. Embora represente algum avanço, essa proposta é insuficiente. Ela ignora as transformações sociais, as evidências científicas e o debate público acumulado sobre o tema.
A Coalizão pela Licença-Paternidade (CoPai), que reúne sociedade civil, setor privado e representantes do poder público, defende o PL 6.216/2023 – fruto de um trabalho técnico, articulado e apartidário – e propõe, como período mínimo, 30 dias. Trata-se de uma medida responsável, baseada em dados e centrada na infância. São inúmeras as pesquisas que mostram os efeitos de pais presentes nos primeiros dias da vida de um filho. É um tempo de possibilidade para que os pais sejam implicados no cuidado, nos afetos, nas responsabilidades.
No campo da psicanálise, a determinação biológica não é garantia de que vínculos sejam estabelecidos, ou seja, toda criança precisa ser adotada. Para que um recém-nascido possa se constituir como sujeito, é necessário uma inscrição da figura paterna, – e, para isso, a mãe e o bebê precisam, também, consentir. É um jogo em que os três atores são peças absolutamente necessárias. Nessa trama, o vínculo com o pai é o que permite que a construção de um espaço entre a mãe e o bebê seja possível, e que possibilita a inscrição na linguagem e no mundo simbólico.
Essa relação com a figura paterna, tão primitiva, e que é um dos primeiros encontros de afeto e cuidado, deixa marcas. Ela tem efeitos sobre a construção do indivíduo com todos os laços sociais posteriores: as relações amorosas, profissionais, sociais e inclusive consigo próprio, enquanto corpo falante. A inscrição da figura paterna pode ser uma oportunidade para que esses filhos possam construir seu próprio percurso e serem mais inventivos quanto as suas escolhas. Permite que as ausências e separações, necessárias na vida, possam vir a ser mais dignas.
A presença do pai é uma oportunidade para o estabelecimento de vínculos e para que, a partir disso, os filhos possam criar seus próprios vínculos no futuro. Não à toa, pesquisas mostram os efeitos da presença do pai nos primeiros dias de um filho, a redução de evasão escolar, melhores índices de saúde e de relações com o trabalho1. Efeitos que têm em comum um certo modo de emancipação. Do lado dos pais, estar presente pode ter efeitos de maior vínculo nas relações familiares, redução de desigualdade de gênero, mais engajamento no trabalho e maior senso de responsabilidade. A licença-paternidade é, em verdade, um 1 Sobre essas e outras pesquisas sobre os efeitos da licença-paternidade, acesse
https://www.coalizaolicencapaternidade.com.br/beneficios
investimento não somente constitutivo para o sujeito, mas também para a sociedade, inclusive em termos materiais. É uma questão política e também ética.
A licença-paternidade nasceu de um momento histórico e da força de um testemunho, uma invenção diante da indignação de meu pai naquele dia em 1988, cuja aposta foi um outro modo de sustentar o que defendia frente aos cinismos e de retaliações estéreis. Em 2025, nos encontramos finalmente com uma nova oportunidade. Trinta dias é o mínimo. Que façamos bom uso desse tempo e dos testemunhos para construir um país mais ético – desde o berço.
Ana Sofia Guerra é psicanalista, psicóloga, embaixadora da CoPai e filha de Alceni Guerra,autor da licença-paternidade.