Ao longo da minha vida jovem e adulta, passando do final dos anos setenta até a primeira eleição de Lula em 2002, o conceito de Povo sempre foi um patrimônio das esquerdas. Quem não lembra do “povo unido jamais será vencido”? Isso por que Povo era, naquela época, a tradução das massas desvalidas, dos camponeses estropiados nas plantações de cana, dos flagelados das secas invadindo as cidades e expondo o horror de suas condições. Mas também Povo eram os operários das fábricas que cruzavam os braços e formavam muralhas de corpos diante dos portões das montadoras, ou enchendo estádios para ouvir o líder barbudo prometer fartura nas mesas, saúde para os velhos e escola para as crianças. Povo eram os estudantes que paralisavam as aulas para reivindicar maior participação nas decisões das escolas, mais vagas nas universidades, mais verba para pesquisa. Povo, enfim, eram os que tinham algo que acreditavam lhes pertencer, mas que alguém – a elite! – subtraía-lhes à socapa, em “tenebrosas transações”, como cantava o compositor popular. Aliás, cantores populares não eram os que as multidões amavam, os bregas, as músicas do Padre Zezinho, os sertanejos, com suas canções de amor ferido ou de saudade da terra natal, mas os que compunham canções denunciando a exploração do povo, com suas letras complexas e suas melodias rebuscadas que eram ouvidas pelos intelectuais com camisetas com frases evocativas do mundo novo no qual todos teriam, de acordo com a sua necessidade, e nada seria de ninguém.
Nos últimos anos, porém, particularmente depois das grandes manifestações de 2013, a ideia de Povo foi migrando para os setores conservadores da classe média urbana e rural, essa massa hegemônica no país que oscila entre a imensa classe média baixa – que escapa da pobreza por um triz mas que se recusa a olhar para trás – e a não menos expressiva classe média média, que tem diarista uma vez por quinzena, paga o automóvel usado em 60 prestações, mas espuma de raiva quando o governo diz que vai taxar as grandes fortunas e escreve no grupo de WhatsApp da família: “comunistas”. Completa esse novo Povo a classe média alta, que habita os condomínios e viaja para Miami fazer compras nos outlets, voltando com malas carregadas de produtos acima da cota permitida por lei, mas que não vê nisso nenhum sinal de contradição às suas convicções de que é a corrupção o grande problema do Brasil.
Esse novo Povo é liberal na economia e conservador nos costumes, isto é, quer que o Estado não se meta em suas contas e negócios, mas quer que o mesmo Estado impeça o comportamento alheio, proibindo que se fale de orientação sexual nas escolas ou sobre temas políticos; querem também que se criminalize qualquer forma de aborto, uso de drogas e condenam até que se comemore o dia da consciência negra, alegando que se trata de “racismo reverso”.
Esse novo Povo é também muito religioso. Evangélico, na sua maioria. Pertence às igrejas que pregam a teologia da prosperidade, aquela que não vê nenhuma incompatibilidade entre ser cristão e ser rico, defender a riqueza e condenar quem quer proteger os pobres, os injustiçados, os desvalidos, os viciados, como o padre Júlio Lancellotti, que é chamado de “comunista”. Esse novo Povo é a favor da pena de morte e da diminuição da maioridade penal, defende as mortes praticadas pelas ações policiais e costuma repetir que “se tá com pena de bandido, leva pra casa”. Acha que as questões de gênero são uma ideologia perigosa e querem seus filhos e filhas longe delas. Mas, ao mesmo tempo, esse novo Povo se diz “o povo do Senhor” e afirma que as questões religiosas devem ser consideradas nas decisões políticas.
E temos assim, um novo Povo, uma maioria que enche as ruas de camisas amarelas e quer que o Estado se curve a elas: “Supremo é o Povo”, diz o pastor do alto do carro de som. Se o Povo está unido, ninguém vai desafiá-lo. Afinal – fina ironia – “o Povo unido jamais será vencido”.
E as esquerdas, perplexas, assistem a banda passar, com música gospel no último volume.
*Daniel Medeiros é doutor em Educação Histórica e professor no Curso Positivo.
@profdanielmedeiros
Muito bom texto! O conceito de povo mudou muito.
Parabéns!