No Tempo da Moviola (Por Valério Azevedo)

Ilustração feita pelo jornalista Valério Azevedo com recurso IA

No tempo da moviola as lembranças eram como os fotogramas do cinema.
Guardavam momentos que jamais irão se repetir. Momentos como aquele
em que há agitação no plateau e nos camarins conspiradores engendram
uma trama. Ou quando são necessários cuidados técnicos com a luz e com
a emoção dos atores. Então, a fita de acetato virgem corria sobre as
engrenagens da câmara e a janela do obturador seccionava o tempo em
inumeráveis instantes de luz.

No cinema é assim, cada instante capturado pela câmera contém uma
minúscula fração do passado. Cada fotograma reúne o conjunto de tudo e
todas as coisas envolvidas com aquele exato momento. Para além da boca
de cena e da tela de projeção, o equilíbrio de uma delicada equação oferece
suporte a essas lembranças, seus ‘mis en scène’, seus enredos e
protagonistas. Transcorridos os momentos únicos em que a ação tem lugar
diante da câmara, os elementos dessa equação se desfazem, desvanecem e
nunca mais irão se repetir.

A própria realidade ao redor será inexoravelmente modificada e nunca mais
retornará ao seu estado anterior – visto o fenômeno estar sendo observado
enquanto ocorre; ou porque alguém de dentro, ou de alguma forma
associado ao fenômeno esteja observando.

Tampouco aqueles que, em alguma medida, se relacionaram com aquilo
que está a se passar na fita saem incólumes de se transubstanciarem e
transcenderem em extravagantes processos alquímicos da fabricação de
fragmentos do tempo estampados na realidade tangível do celuloide.

Uma vez revelado o filme, os quadros impressos no acetato correrão
novamente na grifa do projetor, devolvendo movimento e uma quase vida a
breves flashes da memória, que a seguir se dissolverão no tempo infinito.
Um fato curioso sobre isso é que podemos avançar ou retroceder a fita e
acelerar ou retardar seu movimento, encurtando ou dilatando seus
intervalos fugidios. O que confirma que o futuro é tão somente uma
construção do desejo – resultado da redução do presente à agonia de
eternamente consumir-se em lembranças.

E nisso residia a magia do cinema no tempo da moviola. Quando o filme
terminava nos esquecíamos dele e começávamos a nos concentrar no
próximo. As luzes se apagavam e todos iam embora. Grifas e obturadores
silenciavam e o nitrato de prata poderia repousar intacto sobre a cinta de
acetato na solidão das câmaras escuras, até as luzes se acenderem
novamente.

Porém, se ávidos do passado e de seus comoventes cenários de
indisfarçável papelão pintado voltássemos o filme novamente, poderíamos
reviver por breve tempo todos os efêmeros momentos que o permitiram
acontecer.

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Portal Repórter Brasília, Edgar Lisboa/ Por Valério Azevedo

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