A briga institucional do parlamento brasileiro com o Supremo Tribunal Federal pode fazer o país retroceder aos anos 60 e 70 quando o assunto é o combate às drogas.
Boa parte do mundo compreendeu que a questão das drogas tem duas vertentes. Elas se encontram, ao fim e ao cabo, mas podem oferecer melhores resultados quando tratadas separadamente.
A primeira é a criminalização necessária do tráfico e o combate à produção e distribuição de substâncias potencialmente letais.
A outra é o consumo desenfreado que leva a doenças, ao próprio crime e a problemas sociais e familiares.
No Brasil o legislador entendeu essa questão desde os anos 2000. Mas a forma como o assunto foi colocado na lei deixou dúvidas a serem resolvidas. A morosidade de uma discussão naturalmente difícil, atrasa as decisões, dificulta a interpretação do texto legal e provoca decisões injustas.
Aqui no Brasil, o porte de drogas para consumo pessoal já é considerado crime, de acordo com a Lei de Drogas (Lei nº 11.343/2006). O legislador, no entanto, estabeleceu penas mais brandas para os usuários de drogas, visando principalmente a aplicação de medidas de prevenção, tratamento e reinserção social, em vez de punições rigorosas.
Por isso, o artigo 28 da Lei de Drogas diz que o porte de drogas para consumo pessoal, quando não houver elementos que indiquem tráfico, pode ser punido com medidas educativas. O usuário pode receber uma advertência sobre os efeitos da substância que consome, ser obrigado à prestação de serviços à comunidade, além de participar de programas educativos ou de tratamento. Em casos mais graves, o sujeito pode ser encaminhado para acompanhamento em programas ou serviços de saúde.
O que o STF discute – com enorme dificuldade – é se é possível determinar uma quantidade que possa facilitar a decisão das autoridades policiais, uma distinção entre o que é porte para uso pessoal e o que é tráfico. A falta dessa definição faz com que muitos doentes sejam encarcerados e que muitos traficantes deixem de ser punidos.
A decisão do Senado e que pode ser ratificada pela Câmara dos Deputados, impede que o STF ajude na discussão. Na briga, o parlamento quer que tráfico e porte para consumo sejam crimes de mesma natureza. Não importa que o vício seja mais um problema de saúde; que um problema de segurança pública.
Como disse, na abertura deste artigo, o Brasil por pura “birra”, pode voltar aos anos 60 e 70. E digo isto porque algo parecido ocorreu nos Estados Unidos na década de 60 e atrasou pesquisas científicas importantes em várias décadas. Só hoje há o reconhecimento desse atraso, mas os cientistas ainda encontram enormes dificuldades para retomar o que poderia estar resolvido há um bom tempo.
Em 1967, o presidente dos Estados Unidos, Lyndon B. Johnson, sancionou uma Lei de Controle de Substâncias Psicotrópicas. Ela tinha como objetivo regulamentar e controlar o uso de substâncias psicoativas, incluindo o LSD. Essa legislação colocou o LSD na lista das substâncias controladas, tornando sua posse e distribuição ilegais.
Acontece que o LSD era uma descoberta pesquisada com sucesso como solução para vários problemas de saúde mental, em universidades americanas. Com a criminalização, essas pesquisas foram proibidas e tiveram que ser interrompidas. Como qualquer droga – a morfina é usada como analgésico em hospitais até hoje – a pesquisa poderia encontrar um uso seguro para o LSD, na medida em que todo o remédio é droga, se uma quantidade segura da substância não for determinada pelos pesquisadores.
Eleito Richard Nixon, em 1968 a Guerra às Drogas atingiu seu ápice na década de 1970. O governo Nixon intensificou os esforços de aplicação da lei contra o uso de drogas, e o LSD foi uma das substâncias principais no escopo dessa campanha.
A proibição do LSD nos Estados Unidos na década de 1960 e 1970 não apenas paralisou pesquisas promissoras sobre seus efeitos terapêuticos, mas também contribuiu para a estigmatização do LSD e de outras drogas psicodélicas que também eram pesquisadas por gente séria.
Há quem afirme que foi justamente o estigma, o responsável por gerar a curiosidade e o aumento do consumo de ácido lisérgico entre os jovens.
O resultado da política de Nixon é bem conhecido. Os Estados Unidos continuam combatendo o tráfico e seguem como um dos maiores mercados consumidores de drogas, do mundo. A criminalização fez com que muitas substâncias fossem pesquisadas e criadas fora dos laboratórios legais e universidades, como as metanfetaminas, popularizadas no seriado “Breaking Bad”.
O curioso é que algumas substâncias proibidas acabaram permitidas, nos Estados Unidos, como a mescalina e outras, originadas de plantas que eram utilizadas em rituais religiosos pelos indígenas. O mesmo acontece aqui no Brasil com o Santo Daime. Uso permitido; mas pesquisa proibida.
Somente nas últimas décadas, a pesquisa científica sobre os benefícios potenciais do LSD e outras drogas, em psicoterapia e no tratamento de doenças mentais, começou a ser retomada.
Sabemos que o legislativo reflete a sociedade, na medida em que seus integrantes são eleitos democraticamente por ela. Ainda que o atual parlamento brasileiro seja conservador na atuação e nos costumes; nada justifica retroceder de século num assunto que já foi debatido, experimentado e considerado um erro por um país tão importante na ciência e na tecnologia, como os Estados Unidos.
Principalmente se o único objetivo do texto aprovado esta semana no Senado seja apenas “dar uma lição” ao Tribunal Supremo, porque suas decisões não agradam ao grupo de representantes. Uma decisão destas será uma resposta desagradável, também, ao progresso da ciência e ao bom uso da segurança pública, tão discutida como violenta e injusta no País.
A ciência precisa de incentivo; jamais de retrocesso.
Umberto de Campos é Jornalista, Especialista em neuropsicologia