Do cuidado com as crianças (Sandro Xavier)

Sandro Xavier/Divulgação

Neste 12 de outubro, Dia das Crianças, quero sugerir um debate que já é antigo. Entretanto, apesar de toda a humanidade refletir sobre isso, parece que não tem adiantado nada. Falo isso porque os reflexos da falta de atenção às necessidades das crianças têm sido intensos nos transtornos apresentados por adultos, e nos comportamentos doentios consequentes de atos e de maus-tratos sofridos pelos menores em sua vida mais tenra.

O Dia das Crianças foi instituído em 1924, por inspiração do 3º Congresso Sul-Americano da Criança, que ocorreu no Rio de Janeiro, em 1923. O evento buscava debater temas afeitos ao desenvolvimento infantil e focava em educação e saúde, estimulando a sociedade a dar mais atenção as crianças.

Apesar da importância do evento, o Dia das Crianças não se tornou muito popular nessa época. Sua inserção mais profunda na sociedade se deu, lamentavelmente, por razões puramente comerciais. Foi só na década de 1950 que o povo considerou, de verdade, a relevância da data. Isso porque a fabricante de brinquedos Estrela e a empresa Johnson & Johnson lançaram uma campanha intitulada “Semana do bebê robusto”, incentivando que as pessoas comprassem produtos infantis em homenagem às crianças.

Mais de 100 anos depois, a prática de dar presentes continua forte, mas precisamos voltar ao que o Congresso sugeriu, para que os cuidados verdadeiros com as crianças sejam mais importantes do que comprar brinquedos. Afinal, os presentes podem mascarar uma vida de abuso e de negligência.

Sem querer fazer desse texto o resultado de uma pesquisa profunda, mas, ao mesmo tempo, passando dados de uma observação do cotidiano, muitas das pessoas que mostram problemas em situações que assistimos na tevê, revelam viverem consequências de abusos na infância. Tenho certeza de que você que já leu ou assistiu alguma coisa sobre serial killers já ouviu dizer que seu comportamento é fruto de uma infância pautada em abusos violentos ou sexuais, relegando-os a uma vida adulta vazia de sentimentos e marcada por desejos doentios.

Por outro lado, programas como Quilos mortais, que tratam de obesidade mórbida e seus tratamentos, mostram pessoas que vivem com essa dificuldade relatando que viveram tratamento negligente na infância, muitas vezes também chegando a abusos de ordem sexual ou violenta.

Não estou querendo esconder o outro lado desse debate, que seria a atenção e o foco nas crianças. Evidentemente, o exagero dessa visão, ou seja, tudo tem a criança como centro, pode trazer outros problemas que também são debatidos atualmente, como o transtorno opositivo desafiador (TOD) ou o transtorno de personalidade histriônica, em que alguém demonstra total desconforto por não estar sendo o centro das atenções em determinadas situações. Fruto de ser tratado como mais importante que todos e de ter todos os seus temas considerados sensacionais e extraordinários.

Essas nuanças são importantes e um debate paralelo. Por isso, mesmo sem deixar de lado a necessidade desse viés, quero focar nas atitudes que são deletérias para a personalidade das nossas crianças, já que muitas delas são vítimas de abusos e de violências que ficam veladas no seio da família ou do ciclo de convivência mais aproximado, jogando com aspectos como confiança, responsabilidade, cuidado e até ensino.

Em 2021, como fruto da pesquisa para doutorado na área de linguística, análise de discurso crítica (ADC), lancei o livro O papai me machucou*, que trata de abuso infantil, terapia e ADC. Com esse trabalho, pude encarar os mais profundos problemas encarados pelas equipes de psicólogas, pedagogas, assistentes sociais e outros profissionais que enfrentam esse desafio que parece não ter fim.

A partir das temáticas trabalhadas na pesquisa, somando-as aos exemplos compartilhados mais acima, pode-se perceber o quão grave é para a vida de alguém sofrer esses revezes na infância. As marcas dessas atitudes ficam para sempre, gerando um desconforto tão grande que pode traçar a índole e a personalidade da pessoa.

Como vimos acima, muitas das explicações dadas por assassinos e pessoas que sofrem com transtornos são os abusos sofridos na tenra idade. O que ocorre é que muitos desses que sofrem ainda se lembram do trauma sofrido quando criança. Entretanto, não é incomum uma pessoa se dar conta de que aquilo que sofrera foi abuso somente depois de adulta. É, muitas vezes, na sala da terapia ou da análise que o indivíduo vai se dar conta de que aquele seu parente ou pessoa de grande confiança não estava sendo bonzinho, mas o estava atacando de forma covarde e abusiva.

Temos a tendência a acreditar que o cuidado com a criança sempre foi como vemos hoje, que a criança sempre foi considerada importante na sociedade. Ocorre que isso é um engano. Até o século 15, a criança era quase nada e o conceito de infância não existia. No século 18, começa uma maior aproximação dos pais, apesar de a criança ser, evidentemente, considerada um ser inferior. Um dado importante é que somente no século 19 inicia-se uma importância da relação entre mãe e criança. Agora entenderemos a mudança disso ao lembrar que, somente no século 20, temos a edição do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), dando a elas o reconhecimento de cidadãos com direitos.

Muitas crianças são tratadas por adultos (especialmente os mais próximos. Claro que os pais e mães incluídos) com exploração (seja comercial, física, sexual ou outras). As consequências dessa atitude são múltiplas, e a psicologia, a sociologia e outras têm estudado isso. O ponto é: quando teremos mudança significativa a ponto de vermos esses abusos diminuírem e serem exemplarmente punidos? Por enquanto, espero que comece por cada um de nós. Não somente não fazendo, mas sendo fiscais dentro de casa e na vizinhança.

Que assim, consigamos fazer as crianças viverem uma vida de amor, conforme Jesus, aquele que era o amor feito gente, pediu: “Deixem vir a mim as crianças…” (Mateus 19.14a).

Sandro Xavier
Linguista e Teólogo

(*) XAVIER, Sandro. O papai me machucou: abuso infantil – terapia – ADC – Análise de discurso crítica de relatos de terapeutas sobre abusos a crianças e adolescentes. Rio de Janeiro: Multifoco, 2021.

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