Dai a César o que é de César (Eliseu Pereira)

Eliseu Pereira/Arquivo Pessoal

Esse famoso dito de Jesus foi pronunciado na sua última semana da vida em Jerusalém, numa série de debates e polêmicas com os judeus no pátio do Templo. Segundo os Evangelhos Sinóticos, um grupo de judeus se aproximou de Jesus e perguntou: “Mestre, é lícito pagar tributo a César ou não?” A legitimidade do pagamento de impostos a Roma estava no centro do debate naqueles dias: de um lado, as autoridades judaicas defendiam o pagamento a fim de evitar intervenção de Roma na região; de outro lado, os zelotes eram totalmente contrários ao pagamento de tributos e acusavam as autoridades de infidelidade à lei de Deus.

Jesus percebeu a armadilha: se ele se declarasse a favor do pagamento de tributos a Roma, os seus seguidores ficariam revoltados e o abandonariam como traidor; se ele dissesse que era contra, seus inimigos o acusariam de rebelião e ele seria condenado severamente. Jesus pediu para ver uma moeda: “De quem é esta imagem e inscrição?” “De César”, responderam-lhe os judeus. Então Jesus arrematou com a frase célebre: “Ora, deem a César o que é de César e a Deus o que é de Deus!”
O problema que se impõe é a correta interpretação do dito de Jesus. Alguns pensam que Jesus está defendendo a separação entre Igreja e Estado e, consequentemente, entre as esferas política e religiosa ou secular e sagrado. Outros pensam que Jesus está defendendo o direito de cobrança de impostos pelo Estado e de dízimos pela Igreja. Neste breve artigo, eu pretendo refutar interpretações equivocadas e propor o que considero ser a interpretação correta do que Jesus quis dizer à luz do seu contexto.
Primeiro, a expressão “Deem a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” não implica a defesa da separação entre Igreja e Estado, simplesmente porque, naquela época, não havia nem “Estado”, nem “Igreja” e muito menos separação entre eles! Nos dias de Jesus, o Império Romano dominava todo o mundo conhecido, desde a Espanha até a Síria e todo o norte da África. Já o Estado, como o conhecemos hoje, é criação da modernidade. A diferença entre Império e Estado não é apenas semântica, mas conceitual mesmo. O império era uma superestrutura totalizante. César não era um chefe de Estado, mas estava acima de todas as instâncias imperiais como sumo sacerdote e deus!
De outro lado, não existia Igreja, nem algo que possa equivaler a uma Igreja. Havia a religião romana, que integrava a vida inteira de todos os povos submetidos a Roma, encimada pelo culto ao imperador, que funcionava como a cola que unia todo o império sob o controle de Roma. Não existia a menor possibilidade de separação entre as esferas política e religiosa do Império Romano.
Em segundo lugar, a resposta de Jesus não implica a legitimação de César para tributar a população judaica, pelo simples fato de que César não era o legítimo governante dos judeus. Ao contrário, César representa o poder imperial invasor e explorador. O pagamento de tributo, neste caso, funcionava como coerção para manter os povos sob dominação e vigilância. Os tributos não eram voltados para o bem-estar da população, como num Estado moderno. Eram um tipo de indenização de guerra cobrado por Roma para defender os povos da própria Roma, algo como a segurança prestada por milicianos. Portanto, concluir que Jesus quis legitimar o poder tributário de César soaria como se ele disse aos brasileiros: “Paguem ao Brasil o que é do Brasil e aos EUA o que é dos EUA!” — o que é absolutamente sem sentido! Por que deveriam os judeus pagar impostos a um governante estrangeiro, que se encontrava a milhares de quilômetros da Palestina?
Em terceiro lugar, a resposta de Jesus não se refere ao pagamento de dízimos na Igreja, pois obviamente não havia Igreja. Mesmo que, por analogia, se relacione o pagamento de dízimos nas igrejas ao pagamento de dízimos no Templo de Jerusalém, não faria sentido, porque, não havendo separação entre secular e sagrado, o Templo de Jerusalém não se referia apenas à esfera religiosa, mas a todas as esferas da vida. Nesse dito de Jesus, “o que é de Deus” não deve ser confundido com coisas espirituais.
Para efeito de comparação, os dízimos do Antigo Testamento funcionavam mais como um tipo de imposto único do que como os dízimos que atualmente se pagam às igrejas. A Lei de Moisés estabeleceu uma aliança de solidariedade entre todo o povo, sem a presença de governo, segundo a qual os produtores davam 10% da produção para sustento dos pobres. Os sacerdotes eram os representantes da aliança e, para garantir o equilíbrio entre produtores e pobres, eles e todos os levitas não tinham propriedades — eram os pobres oficiais de Yavé. Ou seja, o dízimo não era uma das contribuições ao lado de imposto, mas em lugar de imposto, porque não havia Estado. A propósito, a partir da instituição da monarquia em Israel, os dízimos foram substituídos por impostos, para a infelicidade geral da nação, conforme advertira Samuel (1Sm 8).
Em quarto e último lugar, a expressão completa “Deem a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” não significa separação nem subordinação das esferas política (de César) e religiosa (de Deus). Pelo contrário, de um lado César é o falso deus e não tem direito a tributar nada, enquanto Yavé, o verdadeiro Deus, é o dono de tudo. De um lado, o falso deus quer expropriar tudo para si e, de outro, o verdadeiro Deus não quer nada para si, pois de nada precisa. Porém, o fato de Deus ser dono de tudo estabelece outra lógica de relação com as pessoas, com os bens e com a natureza. Pagar tributo a César é participar da lógica da exploração que promove o enriquecimento de poucos e o empobrecimento da maioria. Dar a Deus o que é de Deus é romper com a lógica imperial de César e aderir à lógica da solidariedade, colocando-se em pé de igualdade com todos para usufruto dos bens disponíveis.
Certamente a resposta de Jesus causou espanto aos seus interrogadores e eles se retiraram sem retrucar. Afinal, Jesus não respondeu simplesmente “sim”, como um judeu resignado ao jugo romano, mas também não respondeu diretamente “não”, como esperariam os zelotes. A resposta de Jesus foi enigmática e surpreendente e os obrigou a refletir sobre sua relação com o Império Romano. Ele chamou o povo à autoconsciência e à afirmação de sua autonomia e de seu direito de consumir seu próprio produto para o bem-estar coletivo. Não devemos esquecer que, alguns dias depois desse diálogo, Jesus foi preso, julgado e condenado e que uma das acusações contra ele tem a ver com sua atuação contra o pagamento de tributo a César (Lc 23.2).
À luz das palavras de Jesus, perguntemos primeiro: O que é de César? Nada! Que direito César teria de expropriar nações estrangeiras em seu próprio benefício? Nenhum! Aliás, a única coisa “de César” neste contexto é a “efígie” e a “inscrição”, que dizia: “Tiberio César Augusto, filho do divino Augusto”! O que deveria ser feita com essa efigie e inscrição de César? Da resposta de Jesus é possível deduzir algo como: “Se vocês aceitam o senhorio de César, tornam-se tributários dele e então paguem o que é devido por seus súditos”. Perguntemos também: O que é de Deus? Tudo! E a quem Deus concede este “tudo”? Ele o concede a todas as pessoas, para sustento, sem discernir entre grandes e pequenos, ricos e pobres. São dois sistemas opostos, dois senhores e, como disse Jesus, “não é possível servir dois senhores”. Temos que decidir: ou César ou Yavé.
Por fim, o que podemos aprender com essa lição de Jesus sobre o tributo imperial? Por um lado, os tributos em um Estado moderno são mais semelhantes aos dízimos do Antigo Testamento, ao passo que os dízimos das igrejas modernas se parecem mais com os tributos romanos. O pagamento de tributos do Estado é legítimo se cumprirem a finalidade social, assim como a entrega de dízimos nas igrejas de cada um é aceitável se também cumprem sua finalidade original, que é o socorro dos pobres. Assim como os cidadãos devem vigiar o Estado para que não haja abusos ou desvios de finalidade, assim também os religiosos devem vigiar suas igrejas pelos mesmos motivos. O espírito de Roma persiste em diversas formas, inclusive na forma religiosa. E as palavra de Jesus ainda nos interpelam: ou César ou Deus! A qual sistema daremos nosso tributo?
Eliseu Pereira é mestre e doutor em Teologia, membro da Igreja Liberta em Curitiba-PR e administrador do canal Teologia Pé no Chão.

Um Comentário

  1. Excelente esse artigo.

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