Considerações sobre a esperança (Albérico Camelo de Mendonça)

Albérico Camelo de Mendonça/Divulgação

A esperança é o fio de ouro que atravessa a tapeçaria da revelação. Desde o Éden, onde o primeiro lampejo de redenção ressoou na promessa de Gênesis 3:15, até a Nova Jerusalém do Apocalipse, a Escritura inteira se estrutura sobre o eixo da expectativa do cumprimento divino.
Ela é a “virtus media” — a virtude intermediária — entre a fé, que se apropria do que Deus já fez, e o amor, que se realiza plenamente no encontro com Ele. A esperança, portanto, é a tensão entre o já e o ainda não, a respiração espiritual que sustenta o peregrino no intervalo entre a promessa e a visão.
No Antigo Testamento, a esperança é profundamente concreta e relacional. Os termos hebraicos mais frequentes — “qavah”, “tiqvah” e “batach” — não exprimem mera espera passiva, mas confiança perseverante.
O verbo “qavah”, usado em Isaías 40:31 — “os que esperam (qavah) no Senhor renovarão as suas forças” — sugere uma tensão ativa, como a de uma corda esticada em expectativa. A esperança bíblica, portanto, é tensão de fé, não resignação.
O salmista sintetiza essa postura ao dizer: “Somente em Deus, ó minha alma, espera silenciosa, porque dele vem a minha esperança” (Sl 62:5). Aqui, esperança é sinônimo de descanso confiante, fundamentado no caráter fiel de Deus (emunah).
No Novo Testamento, o substantivo grego “elpis” e o verbo “elpízō” elevam o conceito à sua dimensão cristológica. A esperança deixa de ser apenas expectativa e torna-se certeza escatológica: “Cristo em vós, a esperança da glória” (Cl 1:27).
Em Paulo, a esperança é teleológica (voltada para o fim) e pneumática (inspirada pelo Espírito). Ela nasce da justificação (“nos gloriamos na esperança da glória de Deus”, Rm 5:2) e é mantida pela ação do Espírito Santo, que testifica internamente a certeza do futuro prometido.
A esperança é, na teologia cristã, uma virtude teologal — isto é, uma disposição infundida por Deus na alma humana. Tomás de Aquino a define como “habitus mentis, quo homo Deum sperat, tamquam auxilium ad obtinendam vitam aeternam” — “um hábito da mente pelo qual o homem espera em Deus como auxílio para alcançar a vida eterna” (Suma Teológica, II–II, q.17, a.1).
Diferente da fé, que crê no invisível, a esperança projeta-se para o invisível futuro; diferente do amor, que já possui o objeto amado, a esperança ainda o busca. Sua essência é intermediária, como a alvorada entre a noite e o dia — promessa de luz ainda não plena, mas garantida pela fidelidade divina.
Do ponto de vista ontológico, a esperança é ato do ser em devir, expressão da inquietudo cordis de que falava Agostinho: “Nosso coração está inquieto enquanto não repousa em Ti.” Ela confere à existência humana direção e sentido, transfigurando a espera em vocação.
A esperança bíblica encontra seu vértice em Jesus Cristo, o Ressuscitado. Ele é simultaneamente o fundamento e o conteúdo da esperança: fundamento, porque a ressurreição comprova a fidelidade de Deus; conteúdo, porque Cristo é o próprio cumprimento das promessas.
Por isso, Pedro afirma: “Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que, segundo a sua grande misericórdia, nos regenerou para uma viva esperança, pela ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos” (1Pe 1:3).
A esperança cristã é, assim, escatológica, mas não escapista. Ela não conduz o crente a abandonar o mundo, mas a transformá-lo à luz do porvir.
O teólogo alemão Jürgen Moltmann desenvolveu a sua Teologia com fundamento na Esperança. Em sua Teologia da Esperança, descreve-a como “a antecipação ativa do futuro prometido por Deus”, ou seja, uma força revolucionária que impulsiona a história na direção da redenção. Ele associa a esperança à fé e à expectativa do Reino e à ressurreição. Para ele, é impossível o ser humano viver sem esperança:
“Totalmente sem esperança, não se pode viver. Viver sem esperança é deixar de viver. O inferno é a desesperança. Não é por acaso que, acima da entrada do inferno de Dante, está a inscrição: ‘Deixai para trás toda a esperança, vós que entrais aqui’”. (MOLTMANN).
No prefácio à terceira edição dessa obra, Moltmann apresenta a seguinte definição de esperança:
“A esperança do futuro de Deus para o mundo todo, ameaçado de morte, é experimentada hoje novamente como a força vital da existência e comunidades cristãs. Por essa razão, ela também é o interesse que orienta a busca de conhecimento da teologia cristã. Vivemos da esperança e morremos devido às frustrações. Por isso, a fé cristã hoje é inapelavelmente desafiada a assumir a ‘responsabilidade pela esperança.’” (MOLTMANN, 2005, p.27).
E acrescenta:
“Sem o conhecimento de Cristo pela fé, a esperança se torna uma utopia, que paira em pleno ar; sem a esperança, entretanto, a fé decai, torna-se fé pequena e finalmente fé morta. Por meio da fé, o ser humano entra no caminho da verdadeira vida, mas somente a esperança o conserva nesse caminho. Dessa forma, a fé em Cristo transforma a esperança em confiança e certeza; e a esperança torna-se fé em Cristo ampla e dá-lhe vida.” (MOLTMANN, 2005, p.35).
A tensão entre o “já” e o “ainda não” define toda a economia da esperança:
• Já fomos reconciliados, mas ainda esperamos a glorificação.
• Já temos o penhor do Espírito, mas ainda aguardamos a plena herança.
• Já habitamos na graça, mas ainda aspiramos à visão beatífica.
A Igreja, corpo de Cristo, por meio de sua liturgia, seu testemunho e sua comunhão antecipa o futuro de Deus na história. Cada celebração é, nesse sentido, um ato de esperança escatológica — proclama-se a morte do Senhor “até que Ele venha” (1Co 11:26).
No plano existencial, a esperança é resistência espiritual diante do sofrimento. Ela não ignora o mal, mas o enfrenta com fé amadurecida: “Tribulados, mas não angustiados; perplexos, mas não desanimados” (2Co 4:8). A esperança é a última palavra da alma que crê, mesmo quando tudo o mais silencia. Como disse Dietrich Bonhoeffer, escrevendo da prisão: “A esperança não é uma fuga do presente, mas a força para viver o presente com base no futuro que pertence a Deus.”
A esperança bíblica é mais que um sentimento — é uma ontologia da confiança. Ela nos ensina que o tempo não é um abismo sem sentido, mas uma estrada conduzida pela promessa de Deus. Enquanto o mundo concebe o futuro como incerteza, a fé o reconhece como espaço da fidelidade divina.
A esperança cristã é, em última instância, memória do futuro: lembrança antecipada daquilo que Deus prometeu realizar. Por isso, o crente vive com os pés na terra, mas o coração no céu — sustentado pela certeza de que “aquele que prometeu é fiel” (Hb 10:23).

REFERÊNCIAS:

AGOSTINHO de Hipona. Confissões. São Paulo, Penguin-Companhia: 2010.

AQUINO, Tomás. Suma Teológica. Questão 17, Artigo 5.

BONHOEFFER, Dietrich. Resistencia e Submissão – Cartas e Anotações Escritas na Prisão. São Leopoldo- RS, Sinodal: 2025

MOLTMANN, Jürgen. Teologia da Esperança: Estudos sobre os fundamentos e as consequências de uma escatologia cristã. São Paulo, Loyola: 2005.

Albérico Camelo de Mendonça é pastor e professor.