Faz pouco tempo, escrevi um artigo comentando a respeito do Dicionário infernal, que tem um nome oficial imenso (nem vou transcrever aqui), mas que é devidamente conhecido assim em todo o mundo e ao longo do tempo.
Publicada pela primeira vez em 1818, pelo francês Jacques Collin de Plancy, a edição contava com centenas de verbetes que aludiam ao “tema do fantástico, do aterrorizante e do ocultismo” (Xavier; In: Vasconcelos; Da Silva, 2024: p. 89). Hoje você encontra uma bela edição do dicionário, publicada numa parceria entre Universidade de Brasília (UnB), Universidade de São Paulo (USP), e Arquivo Nacional (DE PLANCY, Jacques Collin. Dicionário Infernal: repertório universal. São Paulo: Editora Universidade de São Paulo (Edusp); Brasília: Editora da Universidade de Brasília (Editora UNB); Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2019).
O artigo citado é intitulado “O Dicionário Infernal e o misticismo na sociedade” (XAVIER, Sandro. “O Dicionário Infernal e o misticismo na sociedade”. In: VASCONCELOS, Marina Arantes Santos; DA SILVA, Dirce Maria. Espiritualidade na Literatura: estudos comparados e representações sociais. Itapiranga/SC: Schreiben, 2024*) e focalizou na ideia supersticiosa daquela época, evidenciando a atuação de anjos e demônios na vida humana, bem como a relação que isso tem com os nossos tempos.
No texto, mostrei como as crenças e medos da época podem ser traduzidos na personalidade de algum ser, como acontece com os sete pecados capitais. Nessa tradição antiga, os pecados são, evidentemente, problemas que as pessoas enfrentam ao longo da sua vida, senão vejamos: temos, elencados, luxúria, soberba, avareza, inveja, gula, ira e preguiça. Cada um deles tem relacionado um demônio, respectivamente: Asmodeus, Lúcifer, Mammom, Leviatã, Beelzebuth, Azazel e Belphegor.
Pensando bem, se alguém tem um ataque de ira, isso acontece porque Azazel está dominando a sua vida e levando-o a pensar em algo que não é nada bom. Se uma pessoa exagera na comida e passa a comer além da sua vontade e necessidade, é só entender que sua atitude está sendo conduzida por Beelzebuth. Eles são os culpados por você perder o domínio e fazer o que não é certo para si e que, em muitos casos, leva outras pessoas ao sofrimento.
Já desde aquela época, muita gente, influenciada pela alta religiosidade sem racionalidade, explicava todas as coisas por meio de guerra espiritual envolvendo anjos e demônios. Aliás, para não nos esquecermos dos anjos nessa guerra, os sete pecados capitais são contrapostos por sete virtudes e seus anjos líderes. Vamos conhecê-las?
A luxúria se combate com castidade e com o anjo Anael. Já a soberba exige humildade e a ajuda do anjo Miguel. Avareza pede suficiência e parceria do anjo Cassiel. Para resistir à inveja, devemos agir com caridade e recorrer ao anjo Rafael. No caso da gula, seja moderado e conte com o anjo Sachiel. Nos momentos de ira, a paciência é aconselhada, sob o comando do anjo Miguel. Por fim, quando a preguiça atacar, devemos ser mais diligentes e lembrarmo-nos do anjo Gabriel.
Plancy percebeu, na grande superstição que vogava à época, que os medos eram tão grandes que se tornavam apalpáveis, palatáveis e cheios de personalidade. Tornaram-se seres que viviam entre eles e os atormentavam dia a dia de acordo com as tentações que deles se aproximavam.
Com um misto de ironia e avaliação, ele elencou as agruras que circundavam os cidadãos da sociedade e, com isso, lançou mão do antropomorfismo para dar vida a seres que, até muito por conta da sua publicação, até hoje ganham vida e contam com a credibilidade de muita gente religiosa.
Culpar o demônio por várias situações que se apresentam em nossa vida, portanto, não é um privilégio de nossos tempos. Quantas vezes nós vemos pessoas dizerem que no momento de sua ação infeliz (ou até criminosa) foram tomadas pelo diabo e fizeram o que não deveriam ter feito?
Antes de continuar, quero deixar claro que devemos ser justos ao deixar de lado pessoas portadoras de transtornos que as fazem ouvir vozes, como os esquizofrênicos, que ouvem “pessoas” ordenando que cometam atos que podem chegar ao crime. Esses problemas, que hoje sabemos não se tratar de possessão demoníaca (até mesmo os epiléticos já passaram por esse tipo de julgamento açodado), mas de condições que podem (e devem) ser devidamente tratadas por meio psicoterapêutico ou até com apoio alopático.
Hoje mesmo, no próprio dia em que escrevo este artigo, assistindo a um documentário, ouvi o famoso matador serial americano Theodore Bundy, após ter confessado os seus crimes, tentar explicar que só poderia ter sido possuído por um demônio.
Cada vez mais, esbarramos com explicações sobrenaturais para as pessoas não assumirem seus erros ou seus julgamentos malfeitos. Sem dúvida nenhuma, sei que vocês já se cansaram de ver em jornais (sejam escritos, televisivos, radiotransmitidos ou pela internet) pessoas tentando explicar os seus atos inescrupulosos, alguns classificados mesmo como crimes, por meio de situações que já estão quase tomando forma e sendo atropomorfizadas, como os demônios de Plancy. Dizem eles que sofreriam de problemas psiquiátricos e não teriam tomado seu remédio, teriam sido mal compreendidos ou tido sua fala retirada de contexto, seriam pessoas maravilhosas que são até amigas de outras como aquelas que ofenderam, ou pedem desculpas se “por acaso” agrediram alguém com sua atitude. Tudo isso é só um exemplo. A lista de “desculpas” é grande.
A manifestação dessas agruras personalizadas, assim como ocorreu com Ted Bundy, geralmente surge quando são confrontadas pela Justiça. As pessoas podem ter até orgulho de sua atitude violenta, racista, homofóbica, aporofóbica e outras afins; mas, no momento quando são confrontadas, dão as mais patéticas desculpas para que sejam “perdoadas”.
O artifício de conseguir um “bode expiatório” é muito engenhoso para quem quer fugir de suas responsabilidades. Não se trata, aqui, de desacreditar da existência do diabo e de seus asseclas, mas de entender que a possessão demoníaca não é fato corriqueiro, como querem fazer crer as manifestações teatrais e circenses que vemos nas tevês hoje em dia, chegando a ponto de conhecermos atores contratados, mostrados em mais de dezenas de expulsões transmitidas na telinha.
O fato de entendermos que o exorcismo, muitas vezes, é um artifício psiquiátrico para que a pessoa entenda que houve uma ação religiosa para afastar o mau agouro também nos aponta que as próprias autoridades das religiões têm conhecimento dessa fraqueza humana (tão comum).
No Evangelho, Jesus nos convida a afastarmos o inimigo de nossas almas, a fim de encontrar liberdade: “Curem os enfermos, ressuscitem os mortos, purifiquem os leprosos, expulsem os demônios” (Mateus 10.7-8). Vivamos, portanto, sem medo das agruras de nossas vidas, personalizadas ou não.
Sandro Xavier é Linguista e Teólogo.
(*) Para quem estiver interessado em ler o artigo completo, é possível acessá-lo, gratuitamente, na página da Editora Schreiben (www.editoraschreiben.com), procurando no espaço de busca pelo livro Espiritualidade na Literatura. O artigo é o capítulo 6 do livro.
Diz pra mim o que você achou…
Reflexão importante!! Parabéns pelo artigo!!
Obrigado, Marina…