Analfabetismo Bíblico nas Igrejas Evangélicas Brasileiras (Jacildo Duarte)

Jacildo Duarte/Divulgação

Algumas pesquisas indicam que os evangélicos tendem a ler a Bíblia mais frequentemente que os católicos romanos, embora esses dados possam variar de acordo com a região e o contexto cultural. Um estudo realizado pelo Pew Research Center sobre práticas religiosas em vários países apontou que os evangélicos, especialmente nos Estados Unidos e em partes da América Latina, demonstram uma maior frequência de leitura da Bíblia em comparação com os católicos romanos. Isso pode ser atribuído à ênfase que algumas igrejas evangélicas dão à leitura pessoal e direta das Escrituras como parte essencial da vida cristã. Dados recentes indicam que, embora os evangélicos, de fato, leiam mais a Bíblia do que os católicos romanos, por exemplo, estão longe de ser um modelo de dedicação ao estudo profundo da Palavra de Deus. Essa realidade tem sido tão notável que piadas e brincadeiras surgem frequentemente, fazendo zombaria do nível de conhecimento bíblico demonstrado por alguns segmentos do público evangélico no Brasil.

“A Bíblia não foi deixada para aumentar o nosso conhecimento, mas para mudar as nossas vidas”. A frase, atribuída ao evangelista do Século XIX, Dwight L. Moody, mostra a estreita relação entre o conhecimento bíblico e a transformação de vida daqueles que a estudam com profundidade. A falta de estudo da Bíblia é, talvez, o principal motivo do baixo preparo (ou formação) dos evangélicos brasileiros. Nesse texto pretendo mostrar falhas na igreja e dar algumas sugestões sobre o que devemos fazer para mudar nossa relação com a Palavra de Deus, e destacar que precisamos melhorar muito para sermos considerados bons leitores da Bíblia, caso contrário, continuaremos a ser taxados de analfabetos bíblicos.
O analfabetismo bíblico pode ser definido como a falta de conhecimento profundo das Escrituras, resultando em uma compreensão limitada dos princípios e valores que a Bíblia apresenta em sua mensagem. Diferente da simples ausência de leitura, o analfabetismo bíblico envolve uma desconexão mais ampla com o contexto histórico, cultural e teológico do texto bíblico. Muitas vezes, indivíduos conseguem recitar versículos ou passagens isoladas, mas carecem de um entendimento integral que permita uma interpretação adequada e aplicação na vida diária. Essa condição pode levar a distorções no entendimento das doutrinas fundamentais da fé cristã, prejudicando a formação espiritual e o discernimento teológico.
O analfabetismo bíblico também se manifesta na incapacidade de compreender o papel das Escrituras como um todo. A Bíblia, composta de diferentes gêneros literários, foi escrita em épocas e contextos que não existem mais, utilizando línguas que também não existem mais, e, portanto, exige mais do que uma leitura superficial. O desconhecimento desses aspectos gera uma interpretação fragmentada, onde o sentido das Escrituras é retirado de seu contexto original e princípios bíblicos podem ser aplicados de maneira errônea, gerando com frequência o que podemos chamar de anacronismo bíblico.
Várias causas podem ser atribuídas ao aumento do analfabetismo bíblico nas igrejas evangélicas brasileiras. Uma das principais razões é a falta de ensino expositivo das Escrituras. Em vez de promover uma leitura sistemática e contextual da Bíblia, muitos líderes e pregadores têm optado por sermões superficiais, focados no entretenimento ou em experiências emocionais momentâneas, o que contribui para a formação de crentes que conhecem pouco da Bíblia, principalmente o tipo de sermão mais pregado nas igrejas – o sermão temático. Esse sermão é um tipo de pregação em que se escolhe um tema central e desenvolve a mensagem em torno desse tópico, utilizando diversas passagens bíblicas para apoiar e explorar o assunto. Sua característica principal é a ênfase em um conceito ou ideia específica, em vez de seguir uma passagem bíblica contínua, como ocorre em sermões expositivos, por exemplo. O sermão temático permite ao pregador fazer a leitura de um texto e pregar uma mensagem totalmente desconectada do contexto do texto lido.
Além disso, a crescente influência da teologia da prosperidade, da confissão positiva e da teologia transacional, desviou o foco do ensino bíblico, centrando-se em promessas de bênçãos materiais imediatas. Ao enfatizar o sucesso pessoal e financeiro em detrimento do crescimento espiritual e do compromisso com as verdades bíblicas, essa teologia desestimula e enfraquece o interesse em um estudo bíblico mais profundo.
Outro fator importante é a falta de incentivo ao estudo sistemático da Bíblia nas igrejas. Muitos crentes não são encorajados a participar de escolas bíblicas ou grupos de estudo, o que os impede de aprofundar o entendimento das Escrituras. A prática devocional pessoal também tem sido negligenciada, contribuindo para o declínio do conhecimento bíblico. Além disso, há ainda um elemento novo que vem contribuindo para o pouco tempo dedicado à leitura da Bíblia. Estou me referindo ao uso dos aplicativos da Bíblia principalmente nos aparelhos celulares, o que de certa forma desestimula a leitura de um texto mais longo, ficando a leitura, quando feita, limitada a pequenos textos, às vezes nem mesmo uma perícope completa é lida, mas por conta da facilidade de transporte e localização dos textos bíblicos tem sido a opção de um número cada vez maior de cristãos.
O analfabetismo bíblico tem um impacto profundo na vida cristã e no exercício do ministério. Crentes que não possuem conhecimento sólido da Bíblia são mais vulneráveis a aceitar falsos ensinamentos e doutrinas enganosas, pois não têm a base necessária para discernir o que está de acordo com a verdade bíblica – “Quem não estuda a Bíblia, confunde heresia com a voz de Deus” (frase atribuída a João Calvino). Infelizmente, isso vem ocorrendo com muita frequência nas igrejas evangélicas hoje. E mais: a fé desses cristãos também tende a ser mais frágil, uma vez que a falta de um fundamento sólido impede o crescimento espiritual e o alcance da maturidade cristã.
Além disso, na prática ministerial, o aconselhamento bíblico fica comprometido. Conselheiros e líderes que não possuem um conhecimento profundo das Escrituras podem oferecer orientações superficiais ou até mesmo contrárias aos princípios bíblicos, prejudicando aqueles que estão buscando ajuda espiritual. O resultado é um ministério que não é eficaz em transformar vidas e trazer cura espiritual, emocional e moral aos que dela necessita.
O impacto na prática ministerial também se reflete na forma como a igreja interage com a sociedade. Uma igreja cujos membros e líderes são analfabetos bíblicos pode se afastar de seu papel de ser “luz no mundo” e “sal da terra”, desviando-se da verdade bíblica e comprometendo sua missão evangelística e social.
Ainda bem, graças a Deus, que resta uma esperança: o resgate da educação cristã, pois ela é fundamental para combater o analfabetismo bíblico em todas as suas formas. Um dos principais meios para fortalecer o conhecimento bíblico são as escolas bíblicas dominicais (infelizmente já em desuso em várias igrejas), cursos de discipulado e programas de formação teológica que ensinem a interpretar e aplicar as Escrituras de maneira correta. O estudo sistemático da Bíblia, abordando tanto o Antigo quanto o Novo Testamento, precisa ser parte central da educação oferecida nas igrejas.
Além disso, é importante promover a leitura devocional pessoal. Pastores e líderes devem incentivar os membros a desenvolverem o hábito de ler e meditar nas Escrituras diariamente, oferecendo recursos e ferramentas que os ajudem a compreender melhor o que estão lendo. O uso de métodos de estudo, como a leitura exegética e hermenêutica, também deve ser incentivado.
Outro aspecto essencial é a formação de líderes capacitados. Esses líderes devem ser treinados para ensinar a Bíblia de maneira contextual e prática, abordando as necessidades contemporâneas sem comprometer a fidelidade ao texto bíblico. O fortalecimento da educação teológica pastoral é, portanto, uma das chaves para reverter o quadro de analfabetismo bíblico nas igrejas.
Para reverter o analfabetismo bíblico, várias soluções podem ser implementadas tanto no nível individual quanto comunitário. Primeiro, as igrejas podem investir em programas de ensino que priorizem o estudo mais profundo da Bíblia. Isso significa pregar e ensinar a Bíblia de maneira que os crentes aprendam o significado das passagens dentro de seus contextos e como aplicá-las às suas vidas.
Segundo, a formação contínua de líderes é vital. Pastores, professores e conselheiros precisam ser equipados para liderar as congregações em um estudo sério e profundo das Escrituras. Isso pode ser feito por meio de conferências, seminários, e até mesmo parcerias com seminários teológicos visando a formação de líderes com conhecimentos mais profundos das Escrituras.
Terceiro, promover o discipulado intencional, onde crentes mais maduros guiem os novos convertidos ou os membros com pouca familiaridade bíblica em uma jornada de crescimento espiritual. Esse processo pode incluir encontros regulares de estudo bíblico, leitura compartilhada e discussões em grupos pequenos.
Por fim, a ênfase renovada na cultura de leitura e reflexão teológica pode trazer benefícios para a igreja, impactando tanto o crescimento espiritual individual quanto a força da comunidade de fé como um todo. Desenvolver o hábito da leitura e da troca de livros entre os membros da igreja, criar bibliotecas comunitárias incentivando os membros das igrejas a estudarem, compartilhar materiais de estudo e promover o acesso a comentários bíblicos e demais ferramentas de estudo teológico são formas de garantir que o povo de Deus tenha os recursos necessários para crescer em conhecimento e profundidade bíblica. Além disso, a igreja pode incentivar a realização de encontros regulares para debates teológicos, palestras e conferências que abordem temas bíblicos relevantes e contemporâneos.
Essas iniciativas certamente vão contribuir para maior engajamento com as Escrituras e fortalecer o senso de comunidade e responsabilidade coletiva no cuidado da fé e da doutrina. Um povo que conhece bem a Palavra de Deus está melhor equipado para discernir a verdade, resistir às heresias e falsos ensinamentos, além de se tornar uma igreja mais ativa e relevante no cumprimento da missão de Cristo no mundo. Nunca é demasiado lembrar a severa advertência do profeta Oseias: “O meu povo foi destruído, porque lhe faltou o conhecimento. Porque tu rejeitaste o conhecimento, também eu te rejeitarei, para que não sejas sacerdote diante de mim; visto que te esqueceste da lei do teu Deus, também eu me esquecerei de teus filhos” (Oseias 4:6).
Quando a igreja promove a cultura de estudo bíblico profundo e contínuo, forma crentes com mais conhecimento bíblico, além, é claro, de serem capazes de aplicar as verdades bíblicas em suas vidas diárias, sendo sal e luz em suas famílias, trabalhos e sociedade. Portanto, é vital que essa renovação no estudo das Escrituras seja uma prioridade constante, para que a igreja possa permanecer fiel à sua vocação de ser um farol de verdade e esperança em meio a um mundo que se afasta, cada vez mais, dos princípios bíblicos.
Jacildo da Silva Duarte é pastor, pedagogo, mestre em educação e doutor em ciências sociais.

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