A grande transferência de riqueza (Eliseu Pereira)

Eliseu Pereira/Arquivo Pessoal

A expressão “grande transferência de riquezas” tem sido usada pelos analistas econômicos para designar a transição intergeracional das riquezas produzidas a partir do fim da Segunda Guerra Mundial. Será a maior transferência de riquezas da história. Estima-se que, até 2050, cerca de 70 a 120 trilhões de dólares serão repassados da geração babyboomers para as gerações Y e Z. Considerando as características dessas novas gerações, especialmente no trato com o dinheiro, há uma certa expectativa quanto aos impactos desse evento na economia.
Mas o tema deste artigo não tem nada a ver com herança ou economia. Ao contrário, tem a ver com uma profecia, popular entre evangélicos, segundo qual Deus irá transferir as riquezas do mundo para a igreja, a fim de custear as despesas da conquista do mundo. Conquista, neste caso, não significa evangelização, mas dominação das esferas de poder das nações, no sentido da Teologia do Domínio.
Para entender o teor da profecia, é necessário ter uma noção mínima do momento e do ambiente teológico em que ela surgiu: a Teologia da Prosperidade (a partir dos anos 1970), a Teologia do Domínio (a partir dos anos 1980), o Mandato dos Sete Montes (a partir dos anos 2000) e a Teologia do Coaching (a partir dos anos 2010). Cada uma dessas vertentes, em seu próprio tempo, gerou, nutriu e propagou a profecia da grande transferência sobrenatural de riquezas. O cálculo é simples: se a missão da igreja não é apenas evangelizar, mas dominar as nações, isso custa dinheiro. Ora, o dinheiro do mundo está na posse dos bilionários. Então, a solução é transferir esses recursos para a igreja. Quem fará isso? Como? A resposta é: Deus fará essa transferência de modo sobrenatural.
A partir desse cálculo, há uma mistura de profecias e de textos bíblicos para fundamentar, convencer e propagar a tal profecia entre os crentes de todo o mundo. O primeiro registro profético referente à transferência de riquezas é do pastor itinerante Charles Capps, em 1978, nos EUA: “A inversão financeira aumentará nestes dias. […] Sim, está chegando uma inversão financeira no sistema mundial. Ela tem sido mantida em depósitos de homens ímpios por dias a fio. Mas o fim está próximo. Esses depósitos serão drenados para o evangelho de Jesus Cristo. Isso acontecerá, diz o Senhor. Acontecerá no tempo determinado, e assim será. A palavra do Senhor se cumprirá, de modo que a riqueza do pecador será depositada para o justo”.
Desde então, muitos pastores têm replicado essa profecia, reforçando-a com textos bíblicos para convencer os cristãos, como, por exemplo, “a riqueza do pecador é depositada para o justo” (Provérbios 13.22) ou “dar-te-ei os tesouros escondidos e as riquezas encobertas” (Isaías 45.3). Segundo esses profetas, Deus fará de novo o que fez quando os israelitas tomaram a riqueza do Egito na primeira páscoa, ou quando tomaram as riquezas dos povos derrotados em Canaã. São textos fora de contexto e profecias duvidosas, mas têm sido suficientes para mobilizar cristãos de todo o mundo na expectativa de ficarem muito ricos da noite para o dia.
Além das pregações e profecias, pastores famosos escreveram livros que tiveram grande circulação e aceitação nos segmentos cristãos que mais cresceram nos últimos tempos em todo o mundo: evangélicos, pentecostais e neopentecostais. Isso explica a propagação da profecia. Dois exemplos são o livro A Última Grande Transferência de Riquezas (1997), de Morris Cerullo, e A Grande Transferência de Riquezas: liberação financeira para o avanço do reino de Deus (2014), de C. Peter Wagner.
O livro do Cerullo é mais popular e parece ter sido composto a partir de uma série de sermões: “Marque as minhas palavras: Deus está se preparando para derramar uma prosperidade do tempo final sobre o Seu povo como nunca foi vista antes, de tal forma que a Igreja possa começar a virar a maré da ofensiva diabólica nos meios de comunicação de massa! Essa prosperidade do tempo do fim financiará a colheita final de almas antes do retorno de nosso Senhor Jesus Cristo.”
O livro de Wagner é mais sistemático e abrangente, porque inclui a transferência de riquezas no escopo da Nova Reforma Apostólica, como parte da missão dos apóstolos. Segundo Wagner, os apóstolos deverão assumir o governo da igreja, das nações e de toda a economia. Serão eles que farão a distribuição e a gestão das riquezas, visando a conquista do mundo para Deus. Quando perguntavam a Wagner o motivo do atraso da transferência de riquezas, ele respondia que os apóstolos ainda não estavam posicionados e os cristãos ainda não estão preparados para gerir tanto dinheiro. Wagner morreu em 2016, mas providenciou para que seus projetos fossem continuados pelas redes de apóstolos, que abrangem igrejas de muitos países de todos os continentes. Assim, a Nova Reforma Apostólica catalisou as Teologias da Prosperidade, do Domínio, dos Sete Montes e do Coaching e se tornou o centro de difusão para crentes do mundo todo.
Porém, o atraso no cumprimento dessa profecia e o aumento das expectativas (e dúvidas) criaram o ambiente fértil para aventuras, oportunismos e golpes. A aventura financeira mais propagada hoje é investir em moedas digitais. Muitos profeters estrangeiros e brasileiros estão predizendo que haverá uma alta astronômica e súbita de moedas indicadas por Deus — um tal “cesto de moedas proféticas” — e estão induzindo pessoas despreparadas a gastarem suas economias num mercado muito volátil e de alto risco. O mais famoso deles é Brandon Biggs, profeta estadunidense que ficou famoso por predizer o atentado contra Donald Trump em 2024. Com a credibilidade alcançada pelo acerto naquele caso, ele se tornou um dos principais porta-vozes da profecia da grande transferência de riquezas. Suas profecias são replicadas para todo o mundo. O pastor-coach Pablo Marçal também já está passando o código da transferência de riquezas para seu rebanho.
Muitos cristãos estão caindo em golpes do tipo pirâmide financeira ou “fraude por afinidade”, incluindo o próprio C. Peter Wagner, como ele conta no seu livro. Aqui no Brasil, recentemente, o tal “faraó dos bitcoins”, um ex-pastor da Igreja Universal do Reino de Deus, deu um golpe de R$ 9 bilhões em 89 mil clientes, sendo muitos deles evangélicos. O “sheik do bitcoins” movimentou R$ 4 bilhões entre 2018 e 2022 e prejudicou 15 mil pessoas. Ele também agiu entre pastores e evangélicos. Quem será que os induziu a essa modalidade de investimento?
Vejam que situação: Primeiro, eles redefiniram sua missão no mundo como sendo a dominação das nações. Depois perceberam que faltava dinheiro. Então propagaram essa profecia para resolver o problema que eles mesmos criaram. E depois usam o argumento da multiplicidade de vozes para dar autenticidade a tal profecia. Assim, se enredam cada vez mais num círculo vicioso sem fim.
Esse caso é um alerta para cristãos e não cristãos. Para cristãos, ela mostra o que fizeram de nossa fé: uma mescla de capitalismo, aventuras financeiras e bizarrices. Vale tudo pelo poder e pelas riquezas. Para os não cristãos, ela adverte que há um segmento religioso que está tramando a tomada do poder em todas as nações do mundo. Ao contrário da transferência de riquezas intergeracional prevista pelos analista econômicos, essa profecia está fora de qualquer verificação. Afinal, é uma profecia. Tem prerrogativa de verdade! Ou a pessoa está dentro ou está fora. Ela é tão falsa como as teologias que lhe deram origem, mas milhões de pessoas a levam a sério. E é aí que mora o perigo.

Eliseu Pereira é mestre e doutor em Teologia, membro da Igreja Liberta em Curitiba/PR e produtor de conteúdo digital no canal Teologia Pé no Chão (https://www.youtube.com/c/TeologiaPénoChão)

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