A Chacina da Incompetência (Judson Santos)

Judson Santos/Divulgação

Quem disser que não existe guerra nem pena de morte no Brasil conhece o Brasil? Qual Brasil? O país dominado por milicianos? Ou pela incompetência?
Mais de cem mortos misturados na poeira da rua. Desfaleço. Não consigo disfarçar a minha indignação e divagações que são interrompidas com um aceno imaginário: um rápido cumprimento para os jovens cristãos de Taguatinga sul.

Do final dos anos 70 aos dias de hoje, quase nada mudou. A mesma roda de cânticos onde o templo faz sombra. Venâncio Junior e Jasér, meus dois irmãos, estavam com os cancioneiros. A minha memória saudosista não apagou esses bons momentos de boa cantoria que desliza preguiçosamente pelos anos da nostalgia. Dos que cantavam, alguns sob promessa; outros, em processo de saírem das drogas.

Parece que foi ontem, revivi os fatos no imaginário: ao entrar em casa, o João e o Ribamar, os mais antigos da turma, me acenaram: “Judson, a tia Arlete quer falar com você. Ela está esperando já faz um tempão”.

Assim como a tia Beatriz, mãe da Maristela, Arlete era tia de todo mundo, mesmo sem vínculo de parentesco com ninguém. Apenas um título carinhoso. Sem entender o motivo da visita, recebi os cumprimentos e abraços, os momentos efusivos do encontro.

A tia Arlete disse: “Judson, vim buscar você para nos ajudar no DJB na casa de recuperação de drogas.” Ela nem perguntou se eu queria. Muito menos coloquei impedimentos ou dúvida. Topei, sem pensar muito.

Taguatinga Sul tinha amanhecido um sábado pacato. Na avenida Sandu, pouco movimento. Canto baixinho a música: “eis que mostro um caminho sobremodo excelente”. A música entrou para desviar os pensamentos do horror da chacina que mata na mata dentro da cidade.

Existe um Brasil doente e as instituições despreparadas. Tento gritar para o mundo ouvir: “Matar não é a solução!” –, mas o grito saiu num silêncio sepulcral. Foi um berro apenas facial, caricatura expressão de revolta. Gotas d’água caíam intermitentes do chuveiro. Sentei exausto, ouvindo vozes. Mergulhado nas minhas elucubrações kafkanianas, o sangue da barbárie transformou as ruas e becos do morro do Alemão e da Penha no Rio, como um rio vermelho. Os que foram assassinados, mais de 100, possivelmente frequentaram a Escola Dominical de alguma igreja evangélica. Agora, rostos desfigurados, o que dificulta reconhecer os mortos. Os tiros que receberam na cabeça misturam o vermelho com o verde da mata. Cabeças sem corpo. Braços e pernas decepadas. Eu me senti absolutamente impotente. Pensei em desistir de tudo. Abortei os novos projetos, ingênuos e missionários que contrastam com a truculência do estado e o altruísmo que desconhece caminhos minimamente decentes e producentes.

Não sei quanto tempo deixei a água cair em meu rosto e descer pelo meu corpo. Retorno aos pensamentos para a década de 70.
O coordenador da casa Desafio Jovem de Brasília, pastor Galdino, benignamente influenciado pelo pastor David Wilkerson, fez um excelente trabalho de acolhimento ao longo dos anos. Vem a dúvida: Por que igreja e estado ainda insistem em posição opostas? Todos têm o que oferecer! Não há inferno que resista à união entre crentes e descrentes, sem teologia, e sem a religião capitaneada pela pobre e podre política.

Nas minhas contas, aconselhei e ajudei nas tomadas de decisão bem mais de 1500 jovens e durante 50 anos, todos envolvidos com drogas. Sempre estive próximo dos jovens envolvidos com drogas. Em Criciúma, Santa Catarina, durante sete anos foram experiências marcantes. Ensinei muitos dependentes químicos. Ensinei e aprendi com eles.
Faço aqui uma homenagem aos amigos: Isaac Tavares, Peniel Pacheco, Leila Xavier de Paula, Eudes, Maristela, Glaucia, Jarede, Apeles, Rubens Tavares, Marivan, Silas, Juliana, Vânio e muitos outros. Nos anos 80 chega em Brasília o amigo e professor Paulo Corrêa. Singular apoiador no meu ministério pastoral. Alguns amigos já faleceram, mas a todos os meus aplausos e agradecimentos pelo apoio. Guardo a todos no peito, dentro do coração como recomenda Milton Nascimento.

Retornando à chacina do Rio de Janeiro, foram quase 130 mortos! Versão II da Candelária? Afinal, restaurar vem antes de matar? Nem no dicionário. O que faltou para esses jovens: Bíblia, conselhos, avisos? Certamente muitos tiveram tudo isso. Possivelmente faltou na infância um amigo, alguém que os cercasse e os influenciasse para o bem.

E a igreja? A mesma igreja que terceirizou a assistência aos jovens dependentes de drogas, deve arrepender-se das verbas mal administradas, sem lastro multidisciplinar, condições sub-humanas. A igreja-instituição deve parar com a sangria da hipocrisia. A mesma igreja que segue indiferente à chacina também dos filhos dos crentes, deve parar com a indiferença. Pode parecer discurso da pieguice, porém, matar não é a solução! A solução inicia no apagar das luzes das falsas arrecadações. Avançar o mínimo possível exige vocação e planejamento. A partir daí, é gestão da competência nos múltiplos contextos.

JUDSON SANTOS é Professor, teólogo, terapeuta bíblico, Membro da AELDF – Academia Evangélica de Letras do DF.