O colapso do Rio de Janeiro na visão da socióloga Aspásia Camargo

Por Edgar Lisboa

Aspásia Camargo (Crédito: reprodução Programa Diálogos Com Inteligência)

Entre o colapso e a coragem

A Socióloga e  professora Aspásia Camargo, fez para a coluna Repórter Brasília, uma análise do colapso do Rio de Janeiro. Ela critica a herança militar, denuncia o populismo e a omissão das elites. Fala do crime infiltrado nas instituições, da ausência de autoridade e elogia a tradição cívica e patriótica do Rio Grande do Sul como contraponto ao caos político nacional.

Fusão sem voz do povo

“Foi uma intervenção espúria e ilegal, jamais contestada por nenhuma liderança civil”, afirma Aspásia Camargo, ao relembrar a fusão imposta entre a antiga Guanabara e o Estado do Rio de Janeiro. “Nunca houve plebiscito, nunca houve consulta. Foi o único caso na história do Brasil em que uma união de estados foi feita à força”. Ela classifica a medida como um erro histórico e político de consequências devastadoras. “O processo foi conduzido por militares e aplaudido por civis omissos, um ato de autoritarismo disfarçado de modernização”.

O abandono federal

A professora denuncia que o Rio de Janeiro foi saqueado e abandonado pelo poder central. “A Petrobras arrancou 80% do petróleo do Rio e não fez nada pelo estado”, afirma. “A região do petróleo é uma das mais pobres do país. Não há estrada, não há investimento, não há retorno. O Brasil inteiro se beneficiou do petróleo do Rio, mas o estado foi deixado em ruínas”.

Elite de quinta categoria

Aspásia é contundente: “O problema é que a fragmentação que criou dividiu a elite representativa política. A elite brasileira é de quinta categoria. A democracia entregou o país a uma classe política desqualificada, incompetente e irresponsável. Isso é herança direta do regime militar. Todo mundo fala mal, que teve tortura, mas ninguém falou do mal que isso causou ao Rio de Janeiro”.

Populismo e impostos

Aspásia chama a reforma tributária de “mambembe”: “Melhorou algumas coisas, piorou outras. O setor de serviços vai pagar ainda mais impostos e serviço não é para pagar 60% dos impostos extraídos do Brasil, que vem do setor do serviço, que é um setor injusto, todo mundo paga a mesma coisa”. Para ela, há demagogia fiscal: “Quando eu vou comprar alguma coisa em alguma farmácia é tudo igual, aí o governo vem com essa demagogia, tudo é de graça é peronismo. O peronismo foi uma praga que matou a Argentina. Cobram impostos extorsivos, criam regulações absurdas, impedem o país de produzir e depois fingem que dão esmola para compensar”.

O Estado dominado pelo crime

Aspásia Camargo lembra que o ex-governador Moreira Franco, dizia: “A responsabilidade de combater armas e drogas são problema federal”.

“O crime organizado está infiltrado em tudo: na política, na Justiça, nas polícias. Tem juiz roubando e sendo premiado com aposentadoria. Tem soldado que ganha mil reais e acaba recebendo propina do tráfico. É real, e é fruto do abandono”. Aspásia recorda o relato de Moreira Franco, quando era governador, sobre o artigo 144 da Constituição: “A responsabilidade de combater armas e drogas são problema federal, mas o governo federal nunca fez nada”. Ela afirma que a inação é antiga: “O Rio está nessa situação há 40 anos. Antes era nos morros; agora está no estado inteiro. Eles dominam áreas, se elegem”.

Omissão federal

Aspásia lembra o relato do ex-secretário de Segurança José Mariano Beltrame: “Fomos lá duas vezes pedir para usar armas equivalentes às dos bandidos e não deixaram”. Ela acrescenta: “houve enorme sangria de dinheiro da educação e da saúde para a segurança”.

Os gaúchos e a decência

Aspásia: “Rio Grande do Sul tem uma alma combativa  e identidade forte”

Em tom de contraste, Aspásia exalta o exemplo do Rio Grande do Sul. “Vocês são mais patriotas, mais organizados. O gaúcho tem uma tradição cívica que vem da reforma agrária da República Velha, que criou o mínimo de decência, de ética e de espírito público”. Ela diz que essa herança diferencia o estado dos demais: “O Rio Grande do Sul tem uma alma combativa e uma identidade forte. Aqui, perdemos isso. O Rio virou território do medo, onde o crime se infiltra até nas eleições”.

Sem lideranças confiáveis

“Não há um líder em quem se possa acreditar”, lamenta Aspásia.” Não tem mocinho por aqui”. A socióloga denuncia a falta de referência moral e política. “O governador não tem autonomia, a ALERJ manda nele. E o povo está em choque, porque sabe de tudo isso há anos, mas ninguém faz nada”.

Chama Xi Jinping

“Então se você me perguntar o que tem que fazer, eu digo o seguinte: chama o Xi Jinping, porque esses presidentes da república, esse Congresso que nós temos aí dificilmente vai ter coragem, audácia e competência para fazer uma coisa realmente importante”.  Xi Jinping é o presidente da República Popular da China.

O povo e o medo

Apesar do caos, a professora vê um sinal de mudança: “Pela primeira vez fizeram uma pesquisa nas comunidades e deu 87,6% das pessoas aplaudindo a ação da polícia. Então isso significa uma coisa, é que o povo sofredor vítima oprimido levantou a cabeça, já não aguenta mais. Esse é um ponto importante porque direciona a classe política. Eu não acredito que o país possa se libertar de uma tragédia dessa se tiver um partido que é a favor e o outro que é contra. Eu acho que tem que haver um mínimo de consenso, porque um partido pode sugerir uma coisa outro partido pode sugerir outra. A disputa existe, mas não dá para seguir num jogo de tudo ou nada”.

Justiça e impunidade

Aspásia é direta: “Tem que haver um plano robusto, e esse plano robusto tem que domesticar a justiça. A justiça tem que ficar boazinha, mansinha e trabalhando junto e facilitando as operações. A audiência de custódia é uma aberração”, afirma. Ela cita Goiás como um exemplo positivo: “ Ronaldo Caiado cortou visitas íntimas e mandou gravar conversas com advogados. O crime baixou mais de 50% por causa dessas duas medidas simples”. Para ela, “direitos humanos é garantir que quem mora na comunidade não seja escravo de ninguém”.

Câncer nacional

“O que aconteceu é que o Rio de Janeiro foi durante 30 anos o único e exclusiva vítima desse abandono federal. Nos últimos dez, quinze anos o PCC se instalou na capital financeira do país, está mandando e desmandando de uma maneira extraordinária, se espalhou pelo Brasil e você tem hoje o comando vermelho e essas forças todas espalhadas pelo Brasil inteiro. O cartel de Cáli escolheu o Rio para desovar drogas no Brasil porque era desorganizado e impune”, relembra. “O que era um problema local virou um câncer nacional. O crime se espalhou pela Amazônia, pelo Nordeste, pelo país inteiro”.

Soberania e PEC

Para Aspásia, “essa PEC da segurança é ridícula, muito frágil, um remendo de leis que já existem”. Ela defende autoridade e coesão nacional e ironiza protocolos: “Como prender bandidos com ambulância do lado?”

Reconstrução urgente

“O federalismo está morto”, afirma Aspásia Camargo. “O país tem que ir para o estaleiro: justiça, educação, economia, moral pública”. Para ela, a saída exige patriotismo e ação conjugada sem veto ideológico: “Deixa o governador do PT fazer do jeito dele e o do PL do seu jeito e vamos ver qual é o melhor”. A mensagem final é de urgência política.

Soberania aplaudida, mas em risco

“O que eu digo é: tem que haver autoridade e para haver autoridade, o país tem que estar coeso em defesa da sua soberania”. Aspásia Camargo lembra o discurso em que o presidente Lula foi aplaudido ao afirmar que “a soberania brasileira é intocável”. Para ela, a reação entusiasmada revelou um consenso raro, mas também uma contradição: “A soberania mesmo está em jogo”, alerta.

Aspásia Camargo é socióloga, professora da UFRJ, pesquisadora da FGV, politica brasileira, ex-deputada estadual do Rio de Janeiro, foi Secretária-executiva do Ministério do Meio Ambiente no governo de Fernando Henrique Cardoso.
Portal Repórter Brasília, Edgar Lisboa